Série
TC
Romper barreiras — Um diálogo sobre música, budismo e felicidade
Capítulo 10, Parte final
02/10/2020
Energia criativa tomando força
Ikeda: A “jornada de jazz” dos senhores já se estende por cinquenta anos. Olhando para trás neste meio século, o que consideram ser a maior mudança no jazz? E o que visualizam para os próximos cinquenta anos?
Shorter: Penso que as maiores mudanças têm sido sua definição e expressão ao longo do tempo. Começando nos anos 1920 e continuando na década de 1960, cada época teve seus próprios elementos distintos, sua maneira única de abraçar a humanidade e todas acabaram associadas ao jazz tradicional. Em cada período, esperava-se que o jazz soasse de uma maneira específica. Hoje, o jazz se libertou dessas restrições.
Ainda assim, em sua maioria, os grupos tendem a apresentar jazz do modo como imaginam que deve ser, com os elementos tradicionais que eles entendem ser característicos do gênero. E o som desses músicos fica limitado por tais percepções. Nos próximos cinquenta anos, o mundo da música necessita lançar uma campanha massiva de criatividade. Precisa gerar sucessivas ondas de energia criativa, que se avolumem progressivamente a partir de cada agitação, inundando todos os setores da sociedade.
Hancock: Hum. Para mim é difícil responder a questões como essa porque estou no meio do redemoinho desse processo. O budismo ensina o princípio da prática para si e para os outros. Ao mesmo tempo em que estamos engajados na prática budista para benefício próprio, devemos praticar de modo que possamos inspirar os demais. Considero a vida um acúmulo diário de significados, por isso também estou me esforçando para o ver o jazz, em todas as suas facetas, como uma prática que faço para mim mesmo e para os outros. Penso que as características do jazz — o improviso, que é sua natureza, e o “diálogo” entre os músicos, seu pilar — são especialmente úteis. Acredito que elas sejam necessárias para se desfrutar uma existência satisfatória. Espero que as pessoas vejam esses elementos como úteis não apenas na música, mas também como práticas que podem empregar na vida diária.
Ikeda: A prática simultânea para si e para os outros — essa é a direção que a arte, o aprendizado e a religião deveriam visualizar agora, numa época que tende ao egoísmo e egocentrismo.
Em nosso diálogo, o professor Toynbee sugeriu que a causa de todos os males da sobrevivência da espécie humana — incluindo as armas nucleares e a destruição ambiental — são a avareza e o autoengrandecimento, que, por sua vez, se origina do egoísmo. Ele advertiu que a “atual ameaça à sobrevivência da humanidade só pode ser eliminada por uma mudança revolucionária no coração de cada pessoa”.1 Ele recomendou que essa mudança no coração deva ser inspirada pela religião, expressando as mais elevadas expectativas pelo nosso movimento.
A música e a religião compartilham, no nível mais profundo, o ideal de inspirar o espírito humano. Os sons musicais — animação, alegria e encorajamento — afetam mais de um indivíduo. A música que toca a vida de uma pessoa se propaga com uma rapidez surpreendente e nutre o coração de incontáveis outras. Esse efeito cascata revigorante, tão particular da música, mostra o caminho para revitalizar e rejuvenescer a sociedade.
Shorter: Às vezes, músicos vêm nos perguntar: “Como podem você e o Herbie aparentarem tão jovens?” Os mais jovens exclamam: “Pensei que vocês fossem mais velhos!”. Após os ataques terroristas do 11 de Setembro, esses tipos de comentários aumentaram. Acredito que os outros nos veem como jovens porque, ao sermos energizados por nossa fé, nos empenhamos para infundir esperança não só por meio de nossa música, como também de nossa vida diária.
Ikeda: Não há dúvida de que ambos irradiam tal vitalidade juvenil porque estão se dedicando para desenvolver a geração jovem, ao mesmo tempo em que contemplam o futuro. Nichiren Daishonin escreveu: “A senhora se tornará mais jovem e sua boa sorte se acumulará”.2 Os numerosos pioneiros da Soka Gakkai no mundo, que ao logo de sua existência recitaram daimoku e propagaram o ritmo da Lei Mística, são a prova das palavras de Nichiren Daishonin.
Charlie Chaplin, sempre quando lhe perguntavam qual era seu melhor trabalho, respondia com esta célebre frase: “O próximo”. Como músicos, quais são suas esperanças e sonhos para o futuro?
Hancock: Sinto o mesmo que Charlie Chaplin.
Shorter: Duke Ellington se sentia assim também.
Hancock: Minha expectativa é de que mais músicos se conscientizem da importância de um propósito mais elevado ao decidirem a direção e o conteúdo de sua criatividade: o grandioso propósito de ajudar a inspirar e elevar a vida das pessoas. Também espero que a música expresse uma nova cultura mundial que estabeleça a base para uma sociedade global, onde cada pessoa seja valorizada como cidadã global, contribuindo para o avanço do espírito humano e de nosso futuro compartilhado.
Shorter: Meu sonho daqui em diante é me encontrar com muitas pessoas, e ouvi-las, ambas as mais jovens e as mais maduras, e ajudá-las a despertar e obter uma profunda compreensão sobre o valor de participar em um processo de interação criativa. E isso requer se aventurar no estudo, na descoberta e na análise do desconhecido, com um sentimento de gratidão que permeie todo esse processo. Uma gratidão se manifesta com a aventura. É uma tarefa gigantesca, por isso tenho muito a fazer.
Ikeda: Aqueles que preservam o sentimento de gratidão, independentemente de suas circunstâncias, conduzem uma existência valiosa. Esse sentimento de apreciação impulsiona as pessoas a servir aos outros também.
No capítulo “Torre de Tesouro” (11º), do Sutra do Lótus, budas de inumeráveis mundos em todo o universo se reúnem diante de Shakyamuni e do buda Muitos Tesouros. Por quê? Nichiren Daishonin explica que é para assegurar “a propagação do Sutra do Lótus para todos os filhos do Buda das existências futuras”.3 O ponto fundamental aqui é o futuro — os jovens do futuro. Esse é o mundo do Sutra do Lótus. Enquanto vivermos, devemos avançar com coragem, junto com os jovens e pelos jovens.
Gostaria de pedir a cada um dos senhores que pudesse deixar uma mensagem para a juventude do Departamento de Artistas da SGI do mundo todo.
Shorter: O Departamento de Artistas está realizando um trabalho realmente significativo para reforçar a dignidade humana no mundo inteiro. Seu propósito é inflamar uma paixão mais profunda pela arte humanística. Estou certo de que haverá momentos em que as atividades desse departamento serão expressas com tanto ímpeto, e as pessoas ficarão tão profundamente tocadas, que a experiência vai tirar o fôlego de todas. Herbie e eu com frequência conversamos sobre o nosso desejo de ajudar o Departamento de Artistas.
Hancock: Estou sempre incentivando nossos amigos do Departamento de Artistas da SGI-Estados Unidos a dedicar mais tempo ao desenvolvimento de sua humanidade. Digo-lhes que é fundamental se aprimorarem como seres humanos, pois sua vida interior é a verdadeira fonte da história que sua arte expressa. O mais importante não são essas notas ou esses acordes, mas a contribuição que cada um faz aos demais tanto dentro como fora de sua área artística.
Exemplo perfeito é a vida do Christopher Reeve, ator que interpretou o papel de Super-Homem no cinema nas décadas de 1970 e de 1980. Ele foi um profissional extraordinário, porém, sofreu um acidente quando andava a cavalo, que o deixou paralisado do pescoço para baixo. Apesar desse infortúnio, ele proporcionou enorme auxílio aos outros que também padeciam de severa paralisia. É claro que ninguém gostaria de sofrer acidente semelhante. Contudo, por causa desse revés, Christopher Reeve se adaptou à situação e desafiou a si mesmo a buscar novos objetivos na vida, em um nível diferente. Tudo isso o capacitou a contribuir para a humanidade de uma forma muito mais significativa.
Minha firme convicção é que qualquer pessoa que se destaque no mundo artístico deve conduzir uma existência de insuperável paixão e entusiasmo. É evidente que as ferramentas e técnicas da arte são necessárias, assim como a prática e o aprimoramento. Não obstante, como músico, sinto que, acima e além da música em si, é essencial que a pessoa expanda a humanidade.
O poder da música
Ikeda: Independentemente de sermos artistas ou não, cada um de nós pode criar uma beleza infinita, plena. Aqueles que, ao mesmo tempo em que enfrentam e superam adversidades, se dedicam aos outros, compõem um nobre hino à humanidade, uma bela pintura de uma vida indestrutível que pode ser deixada como legado. Assim como o senhor disse, é um entrelaçamento das interações de uma pessoa com as outras.
De acordo com uma escritura budista, a rainha Shrimala, seguidora de Shakyamuni, fez um juramento para nutrir a bondade em outros seres vivos. Ela jurou pôr em ação quatro práticas: 1) encorajar os demais dirigindo-se a eles com gentileza e consideração por meio do diálogo; 2) fazer oferecimentos ou prover as pessoas com o que necessitassem; 3) empreender ações em benefício dos demais; e 4) unir-se às outras pessoas e trabalhar junto com elas.4 Essas são descrições precisas do espírito que norteiam as atividades musicais que os senhores têm promovido em prol das pessoas e da paz no mundo todo.
Em consequência do terremoto e tsunami de 2011, temos visto uma grande mudança na sociedade japonesa. Um número cada vez maior de pessoas tem se voltado para os que estão sofrendo e procurado saber como ajudar, como proporcionar esperança e encorajamento aos demais. E estão se perguntando que ações concretas podem realizar. Sem dúvida, há muitas respostas para essas questões, mas todos nós podemos começar oferecendo incentivo à pessoa que está bem diante de nós. Embora essa ação possa parecer pequena e simples demais, uma palavra de encorajamento sempre toca o coração de quem a ouve.
Nichiren Daishonin disse: “Mesmo um sopro suave numa concha produz um som que ecoa longe, e até o som da batida leve da mão no tambor ressoa uma longa distância”.5 A voz que emana de um coração sincero e convicto contém um poder imensurável. A força vital de uma voz assim se comunica com todos ao redor e, além disso, se propaga para toda a sociedade.
As mulheres sempre estão no meio desse esforço de incentivar os demais. Que mulheres no mundo do jazz os senhores mais admiram?
Shorter: Tenho de mencionar Billie Holiday, que cantou sobre dignidade humana e exerceu papel fundamental no jazz na primeira metade do século 20. Ela trouxe técnicas inovadoras ao estilo musical, expressando a jornada e as dificuldades de sua vida nas canções que apresentou. Ela pode ter enfrentado muitas adversidades, mas deixou um legado musical de numerosas melodias que inspiraram coragem.
Hancock: Billie Holiday cantava de tal maneira que sentíamos como se uma flecha voasse e atingisse direto o nosso coração. A vida dela foi muito sofrida. Podemos perceber isso em cada uma de suas canções, que tocava nossa humanidade. Sua genialidade capturava a essência e o significado de uma canção, e ela a interpretava com uma intensidade inacreditável, como se estivesse dizendo para você: “Eu compreendo sua dor”. Os músicos que ela influenciou são tão numerosos que não há como mencioná-los.
Há outras que admiro, como Sarah Vaughn, Mary Lou Williams, Nina Simone, Ella Fitzgerald, e artistas atuais, como Maria Schneider, Dianne Reeves, Geri Allen, Dee Dee Bridgewater, Esperanza Spalding e Terri Lyne Carrington, e estas são apenas algumas.
Ikeda: Toda sensei acalentava o desejo de ajudar as mulheres que tinham uma vida de infortúnios a transformar o carma. É por isso que denominei o século 21 de “século das mulheres”. Minha esposa e eu estamos muito felizes de ver o surgimento de líderes se empenhando para criar o “século das mulheres” com grande dinamismo.
Ainda tenho muitas e muitas outras perguntas, mas, infelizmente, acredito que minha aula com os dois chegou ao fim.
Hancock: Estou maravilhado por ter sido recebedor e aluno de um compêndio de seus cinquenta anos de encorajamento neste diálogo. Oro que eu seja capaz de expressar seu espírito por meio de minhas ações em cada momento de minha existência.
Antes de abraçar a fé no Budismo de Nichiren Daishonin, eu não compreendia pelo que me esforçava. Era como se eu estivesse num sono profundo. Hoje me sinto desperto — muito mais consciente que antes. Ainda tenho um longo caminho a percorrer, com a diferença de que nada mais me assusta. Sinto-me confiante para objetivar sonhos cada vez maiores, sem medo de ser proativo e assertivo, e continuar avançando.
O lema de vida que me esforço para pôr em prática é este: “Tenha a confiança e a determinação de viver livremente e sem medo”. Quando lembro a mim mesmo de que posso de verdade conduzir minha vida desse modo, eu me inspiro.
Shorter: Quando eu reler nosso diálogo, terei de observar se estou progredindo rumo a maior compreensão dos verdadeiros ensinamentos de Daishonin e da iluminação que Shakyamuni compartilhou tanto tempo atrás, sem mencionar suas palavras, sua sabedoria e seu exemplo de vida. Estou determinado a jamais me desviar deste caminho.
Meu lema é: “Jamais desistir!” É um slogan sempre vigoroso e brilhante. Apesar de eu estar no início de minha jornada espiritual, firmo meu compromisso de buscar desafios cada vez maiores, empoderado pelo espírito do budismo da verdadeira causa.
Atualmente, estou trabalhando numa música e gostaria de compartilhar a letra com vocês. Embora ainda esteja em processo de criação. É mais ou menos assim:
Ainda que naveguemos no imenso
Oceano da vida,
Não há onda que cubra o reflexo das
Profundezas dos olhos do espelho
A entidade contida no reflexo
Ouse voar adiante do que está além
Da nossa visão
Para enxergar o que todas as
Vidas ilusórias encerram.
Ikeda: Essa letra ecoa um maravilhoso senso de progresso. O amor pela música transcende nacionalidade e ascendência. Quando ouvimos um acorde, somos todos igualmente seres humanos. Antes de sermos japoneses ou americanos, somos seres humanos. A música conduz as pessoas de volta a esse ponto primordial compartilhado.
Conforme já mencionei, um século atrás, Makiguchi sensei, que morreu em defesa de suas crenças, tinha vislumbrado um caminho de progresso magnífico para a humanidade — uma grande mudança da competição militar, política e econômica para a competição humanitária. O poder da música, o poder da cultura e o poder da educação transmitem esperança à humanidade e são forças primordiais para a mudança. Neste momento na história, necessitamos de músicas que revigorem o sentimento humano. Precisamos de um hino à vitalidade humana capaz de inspirar e energizar as pessoas.
Vamos avançar ao longo do caminho do kosen-rufu — com os jovens e pelos jovens — enquanto entoamos uma canção de paz, felicidade, vitória e coragem. Juntos com todos os membros do mundo inteiro, nutro as mais elevadas expectativas pelo sucesso dos dois, à medida que continuam criando com disposição juvenil. Vamos executar uma nova melodia por um futuro de esperança.
Hancock: Ikeda sensei, firmamos nosso juramento de continuar avançando com o senhor pela eternidade. E nos dedicaremos a uma nova fase de apresentações desafiadoras no palco da vida.
Shorter: 1 – 2, 1 – 2 – 3...
Notas:
1. TOYNBEE. Arnold J.; IKEDA, Daisaku. Choose Life: A Dialogue [Escolha a Vida: Um Diálogo]. Londres: I.B. Tauris, 2007. p. 50.
2. CEND, v. I, p. 485.
3. CEND, v. I, p. 300.
4. IKEDA, Daisaku. A New Humanism: The University Addresses of Daisaku Ikeda [Um Novo Humanismo: Discursos de Daisaku Ikeda em Universidades]. Londres: I. B. Tauris, 2010. p. 56.
5. GZ, p. 808.
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