Na prática
TC
Conheça a visão budista sobre “vida e morte”
Redação
01/02/2023
Depois de um dia atarefado, repleto de atividades produtivas, nada mais reparador que uma ótima noite de descanso. Nosso mestre, Dr. Daisaku Ikeda, observa a importância do repouso adequado: “Um profundo sono nos leva à dimensão mais íntima de nossa vida, retornamos à imensidão do vasto universo, e renascemos e revitalizamos nosso corpo e nossa mente. É por isso que nossa ‘bateria é recarregada’ e nossa vida se enche de energia vital após uma boa noite de sono”.1
Para a PhD e professora assistente da Universidade de Michigan, Erica Jansen, dormir bem é fundamental para todos os processos do corpo:
O sono é um estado alterado de consciência em que temos interações limitadas com o ambiente e estamos relativamente quietos e parados (dependendo do estágio do sono). Ao contrário do nosso estado físico tranquilo, o cérebro fica muito ativo durante o sono, realizando muitas funções importantes. O sono é essencial para todos os processos do corpo, afetando nosso funcionamento físico e mental, aumentando nossa capacidade de combater doenças [em geral] e doenças crônicas, e regular o metabolismo, fatores essenciais para manter corpo e mente saudáveis.2
Não é à toa que Ikeda sensei compara o ato de dormir — importante mecanismo para a reparação da energia física — com um dos temas mais intrigantes da humanidade: “vida e morte”. Ele diz:
Ciclos de vida e morte podem ser comparados aos períodos alternados de sono e vigília. Assim como o sono nos prepara para as atividades do dia seguinte, a morte pode ser vista como um estado no qual descansamos e nos reabastecemos para uma nova vida. Desse ângulo, a morte deve ser reconhecida, junto com a vida, como uma bênção a ser apreciada.3
Em vista dessa reflexão, Na Prática elucidará importantes aspectos sobre a visão budista da vida e da morte, e como esse ensinamento pode levar serenidade às pessoas, possibilitando-lhes superar a angústia e o medo em relação à morte.
As quatro fases do sono
Seguindo com a conformidade observada entre o ato de dormir e o tema “vida e morte”, estudos apontam para a importância tanto do tempo apropriado para descanso como o daquele do sono equilibrado. De acordo com artigo publicado na revista Superinteressante, enquanto dormimos o cérebro fica em constante atividade, e a frequência das ondas cerebrais varia. Cada faixa dessa frequência corresponde a uma “fase” do sono. Ao longo da noite essas fases se alternam, e o cérebro cumpre tarefas específicas de cada etapa. Por isso, distúrbios do sono atrapalham os processos para a completude das quatro fases. Vamos conhecê-las:4
Fase 1: Sono leve
É a transição entre a vigília — estar desperto — e o sono. Ondas cerebrais desaceleram e a atividade muscular do corpo despenca, o que pode gerar espasmos e sensação de queda.
Fase 2: Sono médio
O movimento dos olhos para. As ondas cerebrais ficam tão lentas quanto as de quem pratica meditação, com algumas altas eventuais. A temperatura do corpo e a pressão sanguínea diminuem.
Fase 3: Sono profundo
O cérebro pisa fundo no freio e libera ondas lentíssimas. É bem mais difícil acordar. Se acontecer, você pode ficar desorientado por alguns minutos. Nessa fase, podem acontecer episódios de terror noturno e sonambulismo.
Fase 4: Fase REM
As ondas cerebrais disparam e chegam à mesma velocidade do estado de vigília. A atividade cerebral está em alta, assim como a respiração e a pressão sanguínea. Os olhos se movimentam rapidamente — é a fase em que surgem os sonhos.
A ciência expôs as quatro fases e cada uma delas tem papel fundamental no equilíbrio do sono. Agora, trilhando pelo tema vida e morte, o budismo explica que há quatro estágios da vida, como veremos a seguir.
Os quatro estágios da vida
Os quatro estágios da vida expostos no budismo são: a existência durante o nascimento, a existência durante a vida, a existência durante a morte e a existência durante o período entre a morte e o renascimento, ou existência intermediária ou estágio intermediário. A vida é entendida como a repetição contínua do ciclo desses quatro estágios.
Sobre o estágio do nascimento, o presidente Ikeda diz:
O budismo vê o universo como entidade da vida. O universo está imbuído de vida, e onde quer que as condições estejam certas, a vida emergirá.
No sentido mais convencional, naturalmente, nascemos da união de nossos pais e mães. Na junção do espermatozoide e do óvulo é formado um embrião. Na medida em que o embrião se desenvolve, o mesmo acontece com as várias funções do corpo e da mente.
Mas o desenvolvimento de uma nova vida, no entanto, não pode ser explicado simplesmente pela união do espermatozoide e do óvulo. O desenvolvimento do embrião com base na informação genética recebida e nas influências ambientais que experimenta não pode ser atribuído apenas a reações químicas. Algo muito mais profundo faz surgir a vida.5
Ele prossegue, afirmando:
O nascimento, assim como a morte, é um processo. Alguns sutras descrevem a concepção como o surgimento de uma entidade de existência intermediária, ou a introdução da consciência. A concepção é o momento em que essa existência intermediária é conectada à sua nova forma humana.
A vida, em todas as suas formas e em todos os momentos, contém o desejo de criar, é inerentemente ativa e possui o poder positivo da autogeração. Na verdade, a vida é um grande e eterno pulso que constantemente procura se tornar manifesto em todo o universo, sempre que as condições forem adequadas. O budismo nos diz que as causas internas interagem com causas externas para fazer surgir as circunstâncias e condições do nascimento.6
Assim como explicado pelo Mestre, compreendemos que o estágio “existência durante o nascimento” é o que conecta o “estágio intermediário” aos demais como um ciclo infindável. Dessa forma, podemos ilustrar essa etapa com o fecho de um colar, responsável por interligar uma parte à outra.
Com relação ao estágio “existência durante a vida”, Ikeda sensei realça:
De acordo com Nichiren Daishonin, “Quando acreditamos no poder do Sutra do Lótus, percebemos de imediato que a vida jamais envelhece e jamais morre”.7 À medida que envelhecemos, a juventude perpétua pode ser nossa em espírito, mas nosso corpo não é nem imortal nem pode permanecer jovem ao longo da vida. Isso torna ainda mais crucial que conduzamos vidas satisfatórias, fazendo valer cada dia.
A morte é inevitável, portanto, faz sentido encará-la positivamente, como ponto de partida para uma nova vida. O primeiro passo para adquirir uma visão positiva é compreender plenamente que a vida é eterna. (...) No budismo a eternidade é uma série infinita de momentos, e cada momento em si contém a eternidade. Tanto a eternidade quanto o momento existem em nossa vida. O propósito do budismo é nos permitir concretizar essa eternidade dentro de nossa vida presente e viver ao máximo.
Budismo não é mera construção teórica; é uma filosofia prática que nos ajuda a orientar nossa vida realmente da maneira como devemos vivê-la, momento a momento, para conquistar a felicidade e cultivar valores. O ingrediente essencial nesse sentido de autovalorização consiste em reconhecermos nosso maior tesouro inerente — a natureza de buda.8
Como expresso nas palavras do presidente Ikeda, os ensinamentos do budismo nos habilitam a trilhar, de maneira efetiva, uma vida verdadeiramente grandiosa, que também nos possibilita contribuir para a felicidade daqueles ao nosso redor. Além disso, viver de modo sábio é cultivar relações humanas saudáveis, manter um ritmo cotidiano equilibrado, primando pela saúde física e pelo bem-estar emocional para se obter uma existência longínqua e positivamente ativa.
Para entender os últimos dois estágios, “existência durante a morte” e a “existência durante o período entre a morte e o renascimento”, compartilhamos a seguir reflexões e experiências de vida do Sr. Antônio Nakamura, membro do conselho consultivo da BSGI.
Esforços duradouros
Aos 11 anos, em 1963, experimentei a dor pela morte da minha mãe. Ela morreu jovem, aos 36 anos. Com esse fato, minhas irmãs mais velhas se lembraram de que eu não era batizado e no interior do Paraná se dizia que “se uma criança morresse pagã cairia no inferno”. Então, trataram logo de providenciar meu batizado na Igreja Católica e isso se deu em outra cidade onde viviam meus prometidos padrinhos. Foi a primeira e última vez que eu os vi. A morte da minha mãe me levou à religião, mas o catolicismo não me ofereceu respostas sobre a vida e a morte. Oito anos depois, em 1971, foi a vez da minha avó paterna. Ela dormia num quarto separado da casa cuja cabeceira da cama era oposta aos demais ambientes. Uma semana após a sua morte, uma tragédia incomum na época se abateu. Uma forte chuva de granizo caiu sobre o sítio e em toda a região, quebrando as telhas que caíram dentro da casa sem forro. Sobre a cama da minha avó, ainda intacta, cacos de telhas se amontoavam na cabeceira. Isso poderia ter causado ferimentos mortais a ela, se ainda estivesse viva.
A morte é um mistério para todos. Aonde vão aqueles que morrem? Existe céu? E inferno?
Com os ensinamentos do budismo, aprendi que tudo tem explicação. O oposto de morte é nascimento! Vida engloba tudo e nela acontecem todas as fases existenciais.
Gosto de pensar na vida e na morte com base no conceito das “nove consciências”. A vida é percebida com os cinco sentidos ou consciências junto com a mente e a sétima consciência.
Com a morte, elas desaparecem, pois estão no plano físico do corpo que é cremado, ou decomposto, se enterrado. Restam a oitava e a nona consciências que são as forças cármicas e a vida em si, a Lei Mística ou o Nam-myoho-renge-kyo.
No livro Desvendando os Mistérios da Vida e da Morte, Ikeda sensei explana sobre os quatro estágios da existência.
O terceiro estágio refere-se à existência durante a morte. Nesse estágio nosso ser é transformado. Gradualmente, nossos órgãos dos sentidos falham; não conseguimos mais ver, ouvir nem sentir. As funções de consciência que integram nossas percepções sensoriais e mantêm nosso sentido de ego individual também se desvanecem; nosso nome, endereço e conta bancária, entre outras coisas, se tornam irrelevantes. Os efeitos do nosso carma, que são a base do ego, continuam a nos influenciar mesmo após a morte, além de determinar como será a próxima vida.
Todas as nossas ações nesta existência são condensadas no momento da morte em algo como uma semente cármica com potencial de brotar e florescer em nossas existências futuras.
Da perspectiva budista, nossa capacidade de atravessar satisfatoriamente o processo de morrer depende dos nossos constantes esforços durante a vida para acumular boas causas e efeitos e para fortalecer as bases da bondade nas profundezas da nossa vida.
Encerrado totalmente o estágio da morte, entramos na existência intermediária, ou estágio intermediário, que é a existência durante o período entre a morte e o renascimento.
Esta existência, a meu ver, é a mais difícil de explanar. Não há registros científicos sobre ela, já que é algo baseado na crença budista que enaltece a importância da oitava consciência, pois é o seu conteúdo que delineará a próxima existência, inclusive a do renascimento.
Eternidade da vida
Tal como observamos, da perspectiva budista da eternidade da vida, tanto o nascimento como a morte são fenômenos inerentes à vida — ciclo contínuo das quatro etapas da existência. Isto é, na etapa não manifesta, a vida latente se revigora para iniciar a jornada de uma brilhante existência do estado físico; do mesmo modo quando descansamos satisfatoriamente para aproveitar o próximo dia com toda a plenitude. O presidente Ikeda ainda diz:
A inscrição numa tabuleta de bronze pendurada na parede do quarto da casa onde se acredita que tenha falecido Leonardo da Vinci, o gênio que personifica o Renascimento, emoldura a morte com uma luminosidade poética: “Uma vida plena é longa, um dia cheio traz sono profundo, e uma vida realizada traz uma morte tranquila”. A afirmação de Leonardo condiz com o ensinamento budista de que a morte é apenas um meio adequado de a vida continuar. Nosso dia começa com um despertar revigorante. E à noite repousamos nosso corpo cansado para seu bem merecido descanso. Revigorados pelo sono, acordamos novamente na manhã seguinte com renovada energia. Em termos de eternidade da vida, podemos ver a morte como o primeiro passo da jornada para uma nova existência.9
Ampliar a perspectiva do tema vida e morte pode confortar o nosso coração. Além disso, ela nos faz compreender que o “agora”, vivido de modo engrandecedor, tonifica a vida presente e sua eternidade. Então, vamos aproveitar cada instante com máxima disposição, para que nossas ações possam sempre inspirar positivamente as pessoas ao redor.
No topo: Na foto, presidente Ikeda incentiva os veteranos que se reuniram em frente à sede regional de Oita, Japão (dez. 1981). Foto: Seikyo Press
Notas:
1. Brasil Seikyo, ed. 2.146, 8 set. 2012, p. B2.
2. Disponível em: https://sph.umich.edu pursuit/2020posts/why-sleep-is-so-important-to-your-health.html. Acesso em: 16 jan. 2023.
3. IKEDA, Daisaku. Desvendando os Mistérios da Vida e da Morte. São Paulo: Editora Brasil Seikyo, 2019. p. 90.
4. Disponível em: https://super.abril.com.br/especiais/sono/. Acesso em: 16 jan. 2023.
5. IKEDA, Daisaku. Desvendando os Mistérios da Vida e da Morte. São Paulo: Editora Brasil Seikyo, 2019. p. 34.
6. Ibidem, p. 35.
7. Coletânea dos Escritos de Nichiren Daishonin. São Paulo: Editora Brasil Seikyo, v. I, p. 432, 2020.
8. IKEDA, Daisaku. Desvendando os Mistérios da Vida e da Morte. São Paulo: Editora Brasil Seikyo, 2019. p. 57.
9. IKEDA, Daisaku. Desvendando os Mistérios da Vida e da Morte. São Paulo: Editora Brasil Seikyo, 2019. p. 111.
Compartilhar nas