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Relato

A melhor versão de si mesmo

A trajetória de Marlon, que vence o preconceito e se lança a iluminar o coração de outros jovens

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Redação

12/01/2023

A melhor versão de si mesmo

Marlon Mitsunaga tem 25 anos. Suas principais lembranças de infância levam tempo e amadurecem como decisões de vida. Numa ponta, a impressão de ter nascido fora dos padrões normativos da sexualidade de crianças de sua idade. Na outra, a fortaleza sendo construída aos poucos, revestida de uma liberdade que experimentaria no tempo certo. De ser aceito e feliz plenamente da forma como é, fazendo essa comprovação irradiar para outros jovens, imersos talvez na mesma escuridão que lhe serviu de morada.

Um processo transformador. Nascido e criado na periferia de São Paulo, Marlon vivencia perdas e se levanta com a determinação de transformar a realidade social, a partir da própria comprovação. Na organização, é o atual responsável pela Divisão dos Estudantes (DE) da RM M’Boi Mirim, hasteando alto a bandeira da juventude Soka na sociedade. A caminho do sonhado doutorado, ergue-se resoluto na contribuição efetiva para “Uma sociedade mais diversa, inclusiva e democrática”.

Cada pessoa tem uma missão única, a própria individualidade e seu modo de vida. É importante reconhecer essa verdade e respeitá-la, assim ensina o budismo. Quando um jovem se levanta com nobre determinação, a humanidade sorri. Confira a jornada de Marlon.

Jardim de valor

O Budismo Nichiren está na minha vida desde criança, quando era levado pelas minhas tias para as atividades dos estudantes na Soka Gakkai. Momentos inesquecí­veis. Fizeram com que eu pudesse construir importantes laços de amizade, os quais cultivo até hoje.

A RM M’Boi Mirim, onde atuo como responsável pelos estudantes, abrange as regiões de Capão Redondo, Jardim Ângela e Jardim São Luís, bairros do extremo sul da capital paulista. Uma área urbana que nos anos 2000 foi reconhecida internacionalmente pela Organização das Nações Unidas (ONU) como o “Triângulo da Morte”, a mais perigosa do mundo na época, por registrar a maior taxa de homicídios por 100 mil habitantes, em todo o planeta.

Sinto a máxima responsabilidade de estar justamente vivendo ali. Nasci e cresci num desses bairros, o Jardim Ângela, local em que meus pais, professores de escolas públicas da localidade, se conheceram e construíram um turbulento relacionamento.

Desde menino, então, pude me deparar com sofrimentos e supera­ções profundas, dentro e fora da Gakkai. Isso me permitiu crescer nutrindo o compromisso social de transformar a realidade por meio da arte, da paz, da cultura e da educação, objetivos da nossa organização.


Desafio e reconhecimento

Sensações de inadequação, rejeição e ansiedade me atravessavam. Consigo nomear dessa forma hoje (depois de muito daimoku — a recitação do Nam-myoho-renge-kyo — e terapia), pois nem minha família, muito menos eu, conseguia entender o que eu sentia quando criança. Conforme fui crescendo, percebi minha atração por meninos (pronto, agora que serei rejeitado, acreditava nisso mesmo inconscientemente). Tinha medo de que me descobrissem e isso perdurou até os meus 17 anos, quando comecei a aceitar quem eu era. Apenas aos 21 anos consegui conversar abertamente sobre a minha sexualidade com a família, após assumir um namoro.

Entender para transformar

Nesse período, já cursava psicologia e percebi com mais profundidade que precisava cuidar do que sentia. Busquei ajuda e tive a boa sorte de encontrar uma médica que deu nome para a forte angústia que me acompanhava desde criança: transtorno de ansiedade generalizada. Iniciei o tratamento medicamentoso e a psicoterapia, que felizmen­te mantenho até hoje.

Então, a médica solicitou uma série de exames gerais, e outros testes relacionados à minha vida sexual, o que não me deixou preo­cupado, pois sempre me cuidei, pensava. Entretanto, ao abrir os resultados dos exames, a surpre­sa: sou uma pessoa que convive com o HIV.

Devido ao preconceito e à desinformação, parecia que minha sentença de morte estava dada. Na mesma hora, em meio ao choro e desespero, abri o oratório e iniciei a recitação de daimoku de forma completamente diferente. Reconhecendo a vulnerabilidade da vida, precisava fazer valer cada dia para transformar a realidade do meu território e construir “valor humano”.

Ao entender na prática o significado de transformar carma em missão, vem a oportunidade de falar abertamente sobre ser uma pessoa que vive com HIV. Quando descobri meu diagnóstico, pensei que precisava lidar com isso sozinho, o que me causou ainda mais sofrimento. Desejo que dentro da Gakkai possamos criar um ambiente cada vez mais acolhedor para conversar abertamente sobre tudo. E construir juntos os caminhos para lidar com essas situações da melhor forma.

Ao compartilhar o relato da minha vida, decido dar o primeiro passo. Creio, como Ikeda sensei, na força das palavras capaz de mudar o coração das pessoas. O Mestre nos encoraja dizendo que “A ‘arma’ da cultura de paz é a força das palavras que estimulam e promovem a mudança da vida das pessoas, chamada de revolução humana. A palavra é vida, é luz, é esperança”.1

Em busca de aprofundar meu diagnóstico, acabei descobrindo uma imunossupressão severa, apesar de externamente parecer bem. Encontro uma ótima médica, didática e acolhedora e inicio meu tratamento. Em menos de seis meses já não era possível detectar a carga viral em meu organismo nem transmitir o vírus a ninguém. Vale ressaltar que o acompanhamento que realizo é oferecido gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS), sendo o nosso país referência internacional no tratamento do HIV e Aids. Com isso, estou vivo, saudável e cercado de pessoas que amo.


Alicerces de vida

Toda a prática da fé, o estudo do budismo e a atuação na Gakkai foram imprescindíveis para enfrentar esses meus desafios e a dar significado a cada acontecimento, sem ceder à lamentação ou à dúvida do caminho a seguir.

Acredito, assim como Ikeda sensei pondera, que a felicidade não está em algum lugar distante além das montanhas. Ela está dentro de cada um de nós. Não em meio ao ócio e ao sossego. Está no dinâmico pulsar da vida de um “eu” que luta incansavelmente. De um “eu” que desafia os picos íngremes e avança, passo a passo. A melhor versão de mim mesmo.

Perdas desafiam. No fim de 2019, meu pai falece aos 55 anos, vítima de alcoolismo. E, no início de 2020, ainda antes da pandemia, um de meus melhores amigos, de 21 anos, se foi, morto por afogamento no mar. Mas a maior dor ainda estaria por vir. No dia 6 de maio de 2021, minha irmã, aos 30 anos, falece por falta de vacina e consequentes complicações da Covid-19. Saudade que nunca cessará.


Levantar-se e agir!

É hora de me erguer. Reconheço em mim a possibilidade de desenvolver e participar de ações individuais e coletivas que contribuam para essa sociedade e para os ambientes em que coexisto. Exercer minha corresponsabilidade de maneira autêntica no contexto sócio-histórico em que estou inserido, sendo quem eu sou. E, dessa forma, incentivar outras pessoas a também assumir o protagonismo de sua vida.

Tenho a boa sorte de hoje atuar como psicoterapeuta de jovens e adultos e como voluntário no Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), com grupos de pesquisas, onde já iniciei projetos com o enfoque no meu doutorado e na contribuição para o conhecimento científico do meu país.

Estou construindo a minha autonomia: moro sozinho, trabalho por conta própria, comprei neste mês meu primeiro carro. Tenho muito orgulho da minha família! Sou filho de uma “mãe Soka”, professora de escolas públicas, responsável pela Divisão Feminina (DF) de comunidade e coordenadora do Núcleo Educacional Interlagos da CEduc da BSGI. Meu irmão e minha cunhada lideram a juventude Soka do distrito em que atuam. Meu namorado, simpatizante do budismo, é uma pessoa espiritualizada e comprometida com sua responsabilidade social. Na comunidade, somos abraçados por todos, em especial por uma família de membros venezuelanos que nos cerca de muito amor.

Expandir e iluminar

Eu busco me manter conectado a projetos sociais e educacionais que visam ampliar e democratizar o acesso à saúde, à cultura e à educação na “quebrada”. Todos esses princípios humanísticos que aplico em meu trabalho e na minha vida foram cultivados dentro da Gakkai.

Ainda em 2022, no início de retorno presencial das atividades, a RM M’Boi, liderada pelos estudantes universitários, organizou o Movimento Acadêmico pela Paz. Uma atividade regada de emoção, convicção, amor e esperança, dentro do Centro Educacional Unificado Capão Redondo, local tão significativo para a região. Que vitória!

E nossa caminhada não para por aqui. A juventude Soka da RM está lançando o objetivo de percorrer, em 2023, todas as fábricas e casas de cultura de nossa localidade — espaços públicos que estão abertos para nos receber e colaborar para a construção de uma sociedade mais diversa, inclusiva e democrática. Sei que, com isso, estamos criando condições para que, em breve, tenhamos nossa sede regional M’Boi, centralizando o movimento pela paz, o kosen-rufu, de toda a região. Estamos agora unindo forças na organização de base. O humanismo Soka está nos pequenos encontros, nas reuniões de palestra que são a força motriz da nossa organização. Não há orgulho maior. Envolvidos por muito respeito, amor, acolhimento e esperança, valorizando a nossa diversidade. O ano 2023 se descortinou, portanto, faltam sete anos para 2030, centenário da Soka Gakkai. Não há tempo a perder.

Muito obrigado a vocês pela oportunidade de dividir com todos a minha trajetória. Compartilho a crença baseada no que lemos nos direcionamentos do Mestre, de que se os corações estão conectados, a força emerge. Se a força se evidencia, sem falta os caminhos se abrem. Além disso, quando incentivamos os outros, encorajamos a nós mesmos. O incentivo muda as pessoas e também a nós mesmos. Isso não é maravilhoso?

Sensei, aqui está um jovem de esperança do Brasil! Conte comigo, sempre! Finalizo com um trecho de um denso poema, de sua autoria. Que possa acalentar de esperança muitos corações:

De todos os conflitos

e tragédias,

é o coração que divide.

Preocupado com a diferença,

ele faz com que a pessoa

rejeite e exclua

os outros.

Mas esta mesma Terra,

este planeta adorado,

é um rico jardim

com o vistoso e cheio

desabrochar da diversidade.

É a diferença

acima de tudo

que faz com que

cada árvore em flor —

cerejeira, ameixeira, pessegueiro e damasqueiro —

seja de valor inigualável.

A diferença é

a qualidade que

nos permite

aprender com o outro,

de complementar

e preencher o outro,

de respeitar e honrar o outro.2



Marlon Cesar Mitsunaga Paredes, 25 anos. Psicólogo. Responsável pela Divisão dos Estudantes da RM M’Boi Mirim, CNSP.

 

a mãe, a irmã (em memória) e o irmão, segurando no colo um dos pets da família

a mãe, a irmã (em memória) e o irmão, segurando no colo um dos pets da família


com a avó materna

com a avó materna


com o namorado

com o namorado

 


atividade do Movimento Acadêmico pela Paz na RM

atividade do Movimento Acadêmico pela Paz na RM


Notas:

1. Brasil Seikyo, ed. 1.592, 17 fev. 2001, p. A7.

2. Idem, ed. 1.909, set. 2007, p. A4.


Fotos: Arquivo pessoal 

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