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Recordações de Meus Encontros

[31] Presidente S.R. Nathan, de Cingapura

Cingapura é uma nação pequena. Mas o tamanho de uma nação não tem relação com sua grandeza. O que faz um país grande? De uma perspectiva humanística, um grande país não é aquele que produz grandes pessoas? Se isso é verdade, então Cingapura é realmente uma grande nação.

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01/08/2003

[31] Presidente S.R. Nathan, de Cingapura

"O presidente do povo"

Como ele é modesto! No momento em que conheci o presidente Sellapan Ramanathan (S.R. Nathan) de Cingapura, percebi nele uma atitude de decência, totalmente oposta à arrogância que tantos líderes políticos demonstram. Ele era ao mesmo tempo nobre e solícito. Ficou imediatamente claro para mim por que era tão querido e conhecido como o "presidente do povo". Quando mencionei esse reconhecimento popular, ele humildemente objetou, dizendo que eram as pessoas quem deveriam dizer se ele merecia esse título e que isso somente seria verdadeiro se fosse dito após ter completado seu mandato.

Chia Cheong Fook, presidente do Instituto de Estudos do Sudeste Asiático e amigo do presidente Nathan há cinqüenta anos, afirma que, por sua natureza e formação, Nathan não procura as luzes da ribalta. Ele comenta: "O presidente Nathan era o melhor aluno da classe. Ele tirava nota máxima nas teses mas não contava a ninguém. É uma pessoa muito humilde. Eu soube disso somente alguns anos mais tarde, e não por meio dele... Não me lembro de um único episódio em que ele tivesse, consciente ou inconscientemente, buscado chamar a atenção pública para si." Isso contrasta claramente com aqueles que só se preocupam com as aparências e a popularidade.

Quando lhe perguntaram que lições havia aprendido da vida, o presidente Nathan, então um experiente diplomata, disse: "Não devemos nos tornar arrogantes. Por exemplo, os diplomatas facilmente tendem a inflar o ego e a pensar que são muito importantes. Acabam se esquecendo de que, na verdade, exercem aquela função por uma delegação de responsabilidades do governo e de que eles representam o governo ao cumprir suas funções. Esse reconhecimento dura apenas enquanto durar seu dever. Quando posteriormente são chamados de volta a seu país, não poderão ficar apegados àquele reconhecimento presunçoso. Não é isso o que os chineses e os indianos querem dizer com 'A vida não passa de um sonho'?"

Guardando os amigos menos afortunados em seu coração

O presidente Nathan é de etnia indiana, uma minoria em Cingapura. Ele teve uma vida difícil. Seu pai morreu quando tinha oito anos. Ele diz que por ter enfrentado tantos sofrimentos quer que todos os que atualmente enfrentam circunstâncias difíceis sejam bem-sucedidos.

Durante nosso diálogo, percebi que os vários amigos menos afortunados, pessoas humildes, são uma presença contínua no coração do presidente Nathan. Todos os dias, enquanto cumprem seus deveres públicos, ele os consulta em um diálogo interior, perguntando como estão e se essa ou aquela ação que toma os ajudará. Ao contrário, a única coisa que ocupa o coração de certos líderes são eles mesmos ou os interesses egoísticos de seus familiares e amigos.

Todos os anos, o presidente Nathan realiza uma festa em sua residência para o Deepavali, o Festival das Luzes, que celebra o Ano-Novo indiano. Ele não convida apenas pessoas famosas e importantes, mas também amigos de longas décadas, outrora operários, mensageiros e funcionários públicos.

Um de seus conhecidos declarou que certa ocasião o presidente saiu de seu caminho habitual para perguntar sobre algumas pessoas que trabalhavam com ele havia 50 anos. Um outro amigo, que trabalhou com Nathan na Agência para o Bem-Estar Social dos Marinheiros na década de 1960 e que todos os anos é convidado para a festa de Deepavali, dá um exemplo semelhante da preocupação de Nathan pelos outros. Para assegurar que os trabalhadores do mar aposentados não fossem enganados por seus empregadores na hora de receber seus pagamentos, diz ele, Nathan enviava um "guarda de segurança", pois os trabalhadores eram iletrados e assim esse guarda os auxiliava a contar o dinheiro.

O presidente Nathan sempre foi um amigo dos menos privilegiados. Ele também sempre foi um ativista sindical e costumava passar longas horas ouvindo as reclamações e súplicas de vários grupos. Um amigo próximo, lembrando aqueles dias, disse que sempre ficava admirado com a enorme paciência de Nathan. Mesmo hoje, o presidente é muito conhecido por estar sempre disposto a ouvir as pessoas e por dedicar seu tempo pelo bem-estar delas.

Construindo uma sociedade com uma forte tradição filantrópica

A arrogância é um mal porque nos torna insensíveis aos sentimentos dos outros. Para os líderes, a arrogância é uma falha fundamental.

Imediatamente após assumir o gabinete em 1999, o presidente Nathan lançou o "Desafio Presidencial 2000" - um apelo aos cidadãos de Cingapura para fortalecerem sua tradição filantrópica, o espírito de ação voluntária e comunitária. Em seu discurso naquela ocasião, Nathan disse: "Uma forma de medir o quanto progredimos e amadurecemos como nação é o nível de nosso senso de responsabilidade social. Qual a nossa sensibilidade quanto às necessidades dos menos favorecidos? O quanto estamos preparados para ajudar esses necessitados?"

Que nobre clamor! Um país sensível àqueles que sofrem é realmente uma nação desenvolvida.

Um país cujos líderes devotam-se incansavelmente a serviço do povo é uma nação civilizada no verdadeiro sentido da palavra. Da mesma forma, uma nação cujos líderes políticos, autoridades e outros da chamada elite são arrogantes e presunçosos somente pode ser considerada uma civilização retrógrada e incivilizada.

"Onde está meu pai? Ele voltará para casa?"

O presidente Nathan nasceu em 1924. Seu pai era funcionário num escritório de advocacia que trabalhava para fazendas de seringais. Na década de 1930, o mercado da borracha entrou em colapso e seu pai perdeu o emprego. Com uma esposa e sete filhos, além de pesadas dívidas para saldar, o pai de Nathan bateu de porta em porta a procura de um emprego. Após vários meses, ele finalmente encontrou trabalho numa pedreira de granito.

Então, um dia, talvez exausto ou desesperado devido a suas muitas provações, seu pai se matou. "Eu era muito jovem", lembra o presidente

Nathan, "e tudo que me lembro era que eu sempre perguntava às pessoas: 'Onde está meu pai? Ele voltará para casa?'." Nathan deixou seu lar aos 16 anos. Ele encontrou trabalho como office-boy num escritório de advocacia e posteriormente como funcionário numa barbearia. Chegou até mesmo a ter de dormir na rua.

O massacre dos residentes chineses

Quando Nathan estava com 18 anos, o Japão invadiu Cingapura e ocupou o território por três anos e oito meses. O massacre dos chineses em Cingapura, que ocorreu durante a ocupação, é uma página na história desse país que o Japão jamais deve se esquecer. Os militares japoneses reuniram todos os homens adultos chineses e os interrogaram, questionando sua lealdade e acusando-os de serem antijaponeses e agentes inimigos. Arbitrariamente os rotularam de traidores e muitos deles foram levados até os pelotões de fuzilamento e mortos. Os cingapurianos estimam que 50 mil pessoas morreram dessa forma.

Há um movimento no Japão destinado a ignorar esses fatos históricos, mas mesmo que seja possível falsificar os livros, com a história isso é impossível. Precisamos compreender que tentar ocultar essas atrocidades é um segundo insulto às vítimas do militarismo japonês.

"Porque eu sofri..."

O presidente Nathan diz que a guerra foi um momento decisivo em sua vida: "Na guerra pode-se ver o que há de melhor e pior no ser humano e por isso as pessoas amadurecem precocemente."

Após a guerra, ele concluiu seus estudos como autodidata enquanto trabalhava em tempo integral. Ele estava com 28 anos quando decidiu ingressar na Universidade da Malásia. Os outros estudantes zombavam dele por ser muito mais velho, mas isso nunca o incomodou. Meu amigo, o economista Lim Chong Yah, ex-presidente do Conselho Nacional de Salários de Cingapura e professor de Economia da Universidade Tecnológica de Nanyang, lembra que, quando estudante, o presidente Nathan estava sempre pensando no que poderia fazer pelos menos afortunados que ele. Embora Nathan vivesse naquela época com o auxílio de uma bolsa de estudos, ele dava aulas particulares para crianças de famílias pobres sem cobrar-lhes.

Colocando a mão sobre meu coração como uma expressão de profunda estima, disse ao presidente Nathan: "O senhor transformou todas as suas dificuldades pessoais em solidariedade e afeto por seus concidadãos. Demonstramos o mais alto louvor pelo nobre caminho que o senhor escolheu. Eu o admiro!"

Um casal unido e amável

Conheci o presidente Nathan em novembro de 2000, era um dia de céu azul e de brisa cálida. O edifício branco e brilhante chamado Istana, a residência oficial do presidente, localizava-se no alto de uma colina. Minha esposa e eu fomos recebidos pelo presidente Nathan e sua esposa Urmila, que são bem conhecidos dos habitantes de Cingapura como um casal unido e amável.

"Não há outro marido como ele em um milhão", disse a Sra. Nathan certa ocasião. "Ele é muito atencioso, solícito, gentil e compreensivo." Todos podiam ver sua felicidade.

Sim, as pessoas humildes são generosas e calorosas. Elas são abertas e despretenciosas. É isso o que as torna fortes. Quanto mais difícil for a situação em que se encontram, mais força conseguem extrair. Ao contrário, as pessoas arrogantes pensam tanto em si próprias que acabam se tornando inseguras e covardes.

Um refém voluntário

Em 1974, ocorreu um ataque terrorista em Cingapura. Membros do Exército Vermelho Japonês seqüestraram a barca Laju e tomaram a tripulação como refém. Em suas negociações com o governo de Cingapura, os terroristas exigiram um avião para voar até o Kuwait. A preocupação principal do governo era resolver a situação sem derramamento de sangue. Conseqüentemente, um grupo de treze autoridades do governo, liderado por Nathan, que na época trabalhava no Ministério da Defesa, ofereceu-se como refém em troca da libertação da tripulação da barca e para voar com os seqüestradores como garantia de uma saída segura do país. Nathan lembra:

"Quando você está em meio a uma crise, sua mente não pensa em mais nada, nem na própria vida ou na segurança pessoal, somente em como lidar com a crise." Os reféns foram todos libertados e o incidente se encerrou sem que ninguém saísse ferido. Quando Nathan e seus colegas retornaram ao país, foram saudados como heróis nacionais. Quando mencionei esse episódio em nosso encontro, a Sra. Nathan partilhou uma história de bastidores comigo. Ela era professora na época e estava lecionando como de costume quando o diretor chamou-a e perguntou-lhe o que estava fazendo na escola. Ele lhe disse para voltar correndo para casa e foi somente então que ela soube que seu marido estava voando para o Kuwait com os terroristas.

Uma pessoa humilde é forte. A humildade não é uma polidez superficial. Ser humilde não é aparentar uma imagem para que os outros pensem que você é uma boa pessoa. A verdadeira humildade está fundamentada no espírito de abnegação e na consciência de que suas próprias preocupações são pequenas e insignificantes. É uma devoção ardente aos semelhantes e é também a disposição de sacrificar-se por uma missão maior. Ser humilde é saber reconhecer que é inútil orgulhar-se do poder, da inteligência ou da riqueza.

O espírito de orar

A raiz da arrogância em nosso mundo contemporâneo está no desprezo pela fé religiosa e na falta de compreensão do papel da religião. O presidente Nathan certa ocasião fez esta observação: "Quando vemos os chineses orando à Lua, muitas vezes ouvimos os jovens zombando disso e dizendo: 'Mas o homem já chegou à Lua, o que eles estão fazendo?' Naturalmente, aqueles que criticaram se sentiram satisfeitos com o seu raciocínio, mas sua censura revela uma total falta de compreensão do verdadeiro propósito da conduta dos chineses. O significado de orar à Lua para aqueles que assim o fazem é que eles acreditam que há uma força externa, um poder sobrenatural que supera o comum. Assim, prestam seus respeitos à Lua, eles estão implorando às forças sobrenaturais que cuidem deles." Ele também disse: "Espero que os jovens tentem compreender que a religião desempenha um papel importante durante as circunstâncias mais difíceis da vida."

Uma nação com líderes assim é realmente afortunada.

Democracia e fé religiosa

É uma atitude arrogante dos líderes políticos no Japão desprezarem a fé religiosa do povo e uma atitude hipócrita clamarem que valorizam as pessoas de fé quando tudo com que realmente se preocupam é com seus votos. É sinal de um espírito empobrecido considerar a sincera fé religiosa como um objeto de desprezo ou algo a ser explorado. Se esse clima prevalecer, a democracia no Japão ruirá a partir de dentro, como uma árvore corroída pelos insetos. A árvore da democracia cresce forte e saudável quando todos mantemos nossas convicções e princípios e nos baseamos neles com orgulho.

Quando o Japão adotou o regime democrático após a guerra, o filósofo Paul Tillich (1886-1965) observou que a democracia tem como premissa uma base religiosa que reconhece o valor infinito de cada indivíduo. "Isso existe no Japão?", ele se perguntava? "Se não for assim, creio que a democracia japonesa não passará de uma imitação aparente e formal da verdadeira democracia."

"A essência do budismo não está nas cerimônias"

Tentar controlar os outros é uma tendência inerente e um aspecto negativo dos políticos. Em contraste, a fé religiosa está voltada para o desafio da autodisciplina e do autocontrole. A política aglomera as pessoas em massas quantificadas e anônimas, enquanto a fé religiosa abraça cada indivíduo como único e insubstituível. É extremamente importante que os líderes políticos possuam um manancial inesgotável de humanismo para não serem dominados pela desumanidade que é inevitável na política.

O presidente Nathan disse-me: "A Associação Soka de Cingapura e outras organizações budistas estão realizando um magnífico trabalho em benefício dos menos favorecidos, tanto na educação como na saúde. Em minha opinião, a essência do budismo não está nas cerimônias e nas tradições, mas na vida de cada pessoa. As qualidades dos seres humanos serão cada vez mais importantes na sociedade no futuro, e nesse contexto, a Soka Gakkai está prestando uma enorme contribuição."

Ele também comentou que a cybercomunicação não pode ensinar as pessoas a confiar, adaptar-se mutuamente e a agir com gentileza e que esse papel deve recair à família e às organizações religiosas.

Forjando grandes pessoas

Há épocas em que o poderoso rio da história flui lenta e majestosamente e há épocas em que ele corre rapidamente. A nossa é uma época em que ela flui com rapidez. Assim como no campo da Economia, a velocidade das transformações é tão rápida que extrapola nossa imaginação e todas as teorias estabelecidas. E a única coisa a fazer é ir mais rápido. Esse é o motivo de ser tão importante para nós forjar grandes pessoas que possam navegar nessas corredeiras - uma multidão de pessoas talentosas a capazes profundamente sensíveis aos sofrimentos e esperanças de seus semelhantes e que trabalham ativamente pela sua felicidade.

"Nosso desafio e nossa preocupação", disse o presidente Nathan, "é se as pessoas que herdaram esta bela terra conseguem compreender a dificuldade e o sofrimento que passamos antes de atingirmos a prosperidade atual." Quando Cingapura repentinamente separou-se da Federação da Malásia, em 1965, não possuía recursos naturais nem reservas econômicas. Era uma terra que compreendia uma vasta diversidade de grupos étnicos com diferentes línguas e religiões. Mas faltava união e segurança. Faltava até mesmo água. Porém, nessas circunstâncias difíceis, o povo da nova nação uniu-se com a determinação de sobreviver. Eles viveriam ou morreriam - não havia outra opção. Trabalharam juntos, utilizando toda engenhosidade e criatividade ao seu dispor, e obtiveram a prosperidade miraculosa que desfrutam hoje.

Cingapura está entre os países mais globalizados do mundo, de acordo com uma recente pesquisa sobre o fluxo transnacional de bens, serviços, capitais, pessoas e comunicações.1 O Japão, ao contrário, não se encontra nem entre os vinte primeiros. Está fora da lista. Será que uma nação que está atrasada no aspecto humanístico também não está atrasada em todos os demais aspectos?

No ano passado [em dezembro de 2000], encontrei-me com o ministro Lee Kuan Yew, o pai da Cingapura moderna, que tem a profunda consciência de que pessoas de talento são a chave da prosperidade de uma nação. "Construir um país requer paixão", declara ele. "Se a única coisa que uma pessoa faz é calcular - somar, subtrair, debitar e creditar -é um completo fracasso."

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