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“Liberdade e disciplina”

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01/05/2004

“Liberdade e disciplina”
Lembro-me de um livro que li na juventude. Nasci em 1928 e meus primeiros anos foram moldados pelo drama e pelo caos decorrentes da derrota japonesa na Segunda Guerra Mundial. Da noite para o dia, deu-se uma completa reviravolta nos valores estabelecidos. As pessoas se sentiam livres da longa era de trevas dos tempos da guerra e da tirania do governo militar, enfim, dos horrores da guerra. Palavras como “liberdade” e “democracia”, articuladas pelas forças de ocupação, brilhavam com um vigor e uma luz inimagináveis nos dias de hoje.

Foi nesse cenário que li Jiyu to kiritsu (Liberdade e Disciplina), de Kiyoshi Ikeda (1903–1990), na época professor de Literatura Inglesa na Universidade Keio. Na década de 1920, ele passou oito anos estudando numa escola pública inglesa, na Universidade de Cambridge e em outras três faculdades da Universidade de Heidelberg, na Alemanha. Baseado nessa experiência, ele chegou à conclusão — tão convincentemente retratada em seu livro — de que a apreciação da liberdade necessária a uma democracia saudável não é possível sem um rigoroso treinamento e desenvolvimento pessoal no período crítico da juventude, o que corresponde aos anos de estudo na escola pública inglesa. Sem essa experiência de disciplina, defende ele, a liberdade pode degenerar em uma licenciosidade auto-indulgente.

É preciso ressaltar que o livro do professor Ikeda não trata de aspectos negativos da cultura política, notadamente os preconceitos de raça e de classe e a exploração do colonialismo, os quais acarretaram no surgimento da democracia parlamentar. Contudo, para as pessoas de minha geração do pós-guerra diante de uma crescente rejeição ao militarismo e ao fascismo — e de uma luta diária pela sobrevivência — as palavras “liberdade” e “democracia” brilhavam como uma estrela da esperança, prometendo um futuro melhor e radiante. Lembro-me de Liberdade e Disciplina como um livro que continha a essência condensada da democracia anglo-saxã.

O livro narra o seguinte episódio:

Tive a oportunidade de conversar com um especialista em adestramento de cães policiais na cidade de Frankfurt, Alemanha. Era sua política que se não se sentisse bem ou tivesse algo que preocupasse sua mente, cancelaria o treinamento do dia. Em ocasiões assim, corria o risco de que, durante o treinamento, ficasse nervoso. Durante o exercício, pode ser necessário repreender um cão; algumas vezes é necessário a punição física. Mas, se a pessoa ficar realmente nervosa, mesmo que uma vez sequer, não há mais esperança de treinar o cão: o animal desprezará o treinador. Além disso, um cão não aceita ser treinado por alguém que o desprezou. (119)

A pessoa que está sendo treinada é, de certa forma, um espelho que reflete o treinador, um parceiro indispensável. O professor Ikeda compara isso a forjar e nutrir a personalidade por meio da educação, indo mais além ao afirmar: “Em aproximadamente três anos de estudo na Alemanha, essa foi a única coisa que pude aprender com meus limitados talentos.” (119)

Creio que a razão de me lembrar tão bem desse episódio de um livro que li há tanto tempo é esta: para o treinador, o cão policial representa a presença distinta e inegável de um “outro”, que não se inclina facilmente a sua vontade, mas que oferece resistência; o treinador aprendeu que quando seu autodomínio estava sendo questionado, haveria o perigo de que ele perdesse a habilidade de respeitar o cão como um outro, e o cão por sua vez responderia com desprezo.

Essa verdade, que se aplica até mesmo na tentativa de treinar um cão policial, aplica-se com maior sutileza e significado no caso das interações entre os seres humanos. “Depois de ensinar por mais de 20 anos, descobri que ainda tenho de dominar este princípio tão evidente.” (119) As palavras do professor Ikeda devem ser lidas como a confissão franca e honesta de um excelente educador.

O “eu” requer a existência do “outro”. Não podemos nos engajar com os outros de forma efetiva e produtiva se carecemos da tensão interior, da vontade e da energia espiritual para guiar nossas emoções. Reconhecendo o que nos é diferente e externo, sentindo a resistência que isso oferece, somos inspirados a exercitar o autodomínio que nos traz o prazer da convivência. Ignorar o outro é, portanto, minar totalmente nosso ser.

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