marcar-conteudoAcessibilidade
Tamanho do texto: A+ | A-
Contraste
Cile Logotipo
Diálogo Sobre a Filosofia Budista

DIGNIDADE DA VIDA

2ª e última parte

download do ícone
ícone de compartilhamento

01/02/2005

DIGNIDADE DA VIDA
Terceira Civilização — Uma vez que o budismo preza, acima de tudo, a vida de cada ser humano, seria correto, no caso de famílias menos favorecidas financeiramente, praticar o aborto, para “não colocar alguém no mundo para sofrer”? A propósito, o que os senhores pensam sobre a gravidez indesejada e precoce?

Maria de Nazareth da Fonseca Solino — Nitiren Daishonin constantemente afirmava que uma única vida vale mais do que o maior sistema de mundos. Na escritura “A tartaruga de um olho só e o tronco de sândalo flutuante”, ele compara a raridade de nascer como ser humano à permanência da tartaruga no fundo do mar por um período de mil anos. Por outro lado, o presidente Toda afirmava que “a vida humana e a Terra constituem um único organismo vivo na imensurável vastidão do Cosmo” e que, “neste contexto, o nascimento de uma nova vida não é apenas uma questão de um bebê emergindo do útero de sua mãe, mas um evento em conexão entre nosso planeta e o Cosmo como um todo”.1 E no diálogo com Bryan Wilson, o presidente Ikeda manifestou sua posição sobre o aborto da seguinte forma: “Como defensor do respeito pela vida, sou inteiramente contrário ao aborto na maioria dos casos, pois considero errado terminar artificialmente uma vida já iniciada e, assim, condená-la à escuridão antes de ela chegar sequer a ver a luz. Além disso, o aborto é física e mentalmente uma crueldade com a mãe e, se realizado com freqüência, pode torná-la estéril.”2 Para ele, o único caso “aceitável” é quando a vida da mãe está ameaçada. Para que isso não ocorra, ele defende que a causa básica deve ser erradicada, como medidas sociais para diminuição da violência, controle da natalidade e cuidados pré-natais.

Júlio Tadachi China — O budismo é, de fato, contra o aborto. No entanto, essa é uma decisão que está no campo e na dimensão dos valores pessoais, comandados pelo estado de vida dominante no momento da decisão, conforme já explicado. Um exemplo típico dessa situação é que, embora pratique o budismo, não se está imune a filhos que recorram às drogas ou a familiares que tomem decisões equivocadas. Em ambos os casos, pode haver uma falha na ética da convivência familiar que, juntando-se à propensão cármica, faz surgir a circunstância. Desejar ampliar essa compreensão da ética da vida é fundamental para o praticante do budismo. É nesse sentido que o maior patrimônio de um budista é justamente a amplitude e a dimensão da consciência da lei de causa e efeito. Consciente disso, o budismo é uma filosofia que permite ampla liberdade de ação.

Nazareth — É verdade. Quanto à gravidez indesejada, é certo que hoje a mídia praticamente empurra os jovens para a vida sexual e muitas vezes os próprios pais, sem perceberem, alimentam a supervalorização do sexo como fonte de prazer e identidade. Os rapazes são estimulados muito cedo à vida sexual e algumas moças, que ainda não a iniciaram, sentem-se sem atrativos e diferentes. Enquanto isso, outros prazeres como ler um bom livro, exercer a criatividade de estar em contato com a natureza, praticar esportes são esquecidos. É necessário esclarecer os jovens sobre as responsabilidades da vida sexual. Ao iniciá-la, tanto a mulher quanto o homem devem saber que estão assumindo riscos como doenças sexualmente transmissíveis, gravidez e frustrações (afetivas, emocionais e mesmo sexuais), entre outros. Assim, além do exame preventivo, devem estar atentos para infecções que podem aumentar as chances de terem câncer e doenças de próstata no futuro. Devem exercer suas atividades dignamente, sem se exporem a situações e locais que podem ser fonte de doenças e outras situações constrangedoras, e saber que uma gravidez indesejada e precoce pode interromper um projeto de vida — os estudos, o trabalho etc. —, além de torná-los mais dependentes dos pais e responsáveis por outra vida além da sua. O sexo, como qualquer atividade humana, pode ser exercido dentro dos dez níveis de energia representados pelos dez estados de vida, o que significa que ao escolher a forma de praticá-lo, o jovem pode estar optando pela descoberta e o prazer sadio, ou por mais sofrimento.

Reginaldo Tateigi — Educação, filosofia e valores éticos apurados melhorariam muito essa visão. Nosso mestre nos oferece tudo isso numa amplitude fenomenal e inigualável. Nosso movimento é da mudança da realidade negativa para a positiva, e o compromisso pessoal com a filosofia e a fé é a base para efetivar isso, que é missão e não mero objetivo.

Terceira Civilização — Outros assuntos ainda em debates são: clonagem, doação de órgãos e eutanásia. Com base na visão budista, poderiam comentar a respeito?

Tateigi — A questão da eutanásia na visão comum justifica-se em poupar o paciente de mais sofrimentos decorrentes da doença clinicamente irreversível, cessando premeditadamente sua vida. Em um quadro clínico de falência de órgãos vitais, a dependência plena de aparelhos médicos para manutenção dos sinais e funções vitais do organismo não oferece nenhuma esperança de recuperação, mesmo na melhor das expectativas. Porém, por pior que esteja, o paciente está vivo quando se pratica a eutanásia.

China — Exatamente. Um único momento de vida é muito precioso. Nas escrituras de Nitiren Daishonin consta: “A vida é a mais preciosa de todas as posses. Se a senhora for capaz de estender sua vida mesmo por um dia, será mais valioso do que dez milhões de ryo de ouro. É por causa do capítulo Juryo que o Sutra de Lótus é superior a todos os outros sutras. O maior príncipe do mundo seria de menor importância do que a grama se não fosse capaz de viver além de sua infância. Mesmo um homem com sabedoria tão brilhante como o Sol seria de menor significado do que um cão vivo se morresse ainda jovem. Apresse-se em acumular o tesouro de sua fé e supere a sua doença sem um momento de atraso.”3

Tateigi — Tanto a questão da eutanásia como a do transplante de órgãos encontra impasse dentro da ótica budista no seguinte ponto: qual é o momento exato em que a vida cessa? Interromper a vida ou adiantar o momento dela acabar é um atentado contra a dignidade da vida, pois foge da ordem natural das coisas. Afinal, conforme o trecho da escritura citado pelo China, enquanto houver vida, há esperança e vale a pena viver. Existem relatos de pacientes terminais que desenvolveram inacreditável recuperação e conseguiram prolongar a vida mesmo que por poucos minutos, sendo este, porém, o tempo suficiente para fazer a diferença de uma vida inteira para o paciente ou para as pessoas próximas. Por exemplo, recentemente, eu e minha esposa vivemos um episódio que nos emocionou muito. Trata-se de um membro da Divisão Feminina bastante veterana na prática. Ela estava em fase terminal de câncer. Apesar do intenso sofrimento, jamais lamentou seu infortúnio. Ao contrário, dedicava-se diligentemente à prática. Em todo o tempo que permanecia desperta, recitava Daimoku e pedia a todos ao seu redor para fazer o mesmo. Seja no hospital ou em casa, junto a médicos ou enfermeiras, aproveitava para falar sobre o budismo aos que não o conheciam. Naturalmente, seus familiares sofriam muito pelo avanço de sua doença. Mesmo assim, ela prolongou sua vida por mais de dois anos. Quando faleceu, demonstrou uma vitalidade que não se vê na mais saudável das pessoas. Mesmo nos últimos instantes, ela preocupava-se com as pessoas ao redor, buscando fazer o melhor para cada uma delas. Ela ensinou a importância de ser forte até o último instante e comprovou o estado de Buda no momento mais crítico de sua vida. Por isso, cada instante valia mais do que qualquer tesouro. Até hoje seu relato incentiva muitas pessoas, o que poderia ser diferente se ela tivesse desistido e se entregado à morte.

Nazareth — Embora o tempo de vida seja um carma determinado, este pode ser modificado. No período em que trabalhei com doentes graves, lembro-me de como era difícil, no caso de alguns pacientes, prever se haveria ou não a recuperação. Freqüentemente éramos surpreendidos quando tudo parecia apontar para um resultado e outro completamente diferente acontecia. Também no diálogo com Bryan Wilson, o presidente Ikeda analisa que a dor da proximidade da morte não se restringe apenas à dimensão física, mas engloba outros três tipos de sofrimentos: o sofrimento com tormento, o sofrimento da negação do prazer e o sofrimento com conhecimento da impermanência de todos os fenômenos. Ele conclui que o desenvolvimento da ciência médica no combate à dor associado ao cuidado afetuoso da família e a assistência da religião podem prover uma morte tranqüila sem haver a necessidade de se discutir a eutanásia.

China — Correto. E não há como coibir esse comportamento se não houver consciência da dimensão cósmica da vida, como já dito anteriormente. É fato que o raciocínio simplista de aliviar o sofrimento não contempla essa dimensão. Ao mesmo tempo penso que a ciência deveria fazer todo o esforço possível para que pessoas em estágio terminal tenham menos dor, e os hospitais deveriam também buscar novos caminhos para humanizar tanto custos como ambiente, a ponto de permitir a presença mais constante da família ao lado do paciente, enquanto oferece o melhor tratamento.

Penso que sofrimentos de toda ordem, seja ao paciente seja à família, impingido pelo tratamento e pelo ambiente hospitalar — e a pressão dos custos financeiros — são fatores que, considerada a ausência quase que total de ética pela falta de filosofias de valor, tem hoje uma forte influência nas decisões que induzem à eutanásia.

Nazareth — Com relação ao transplante de órgãos, o presidente Ikeda abordou esta questão no diálogo com Arnold Toynbee, alertando quanto à importância de se constatar a morte do doador antes da retirada dos órgãos.4 Com Bryan Wilson, enfatizou a importância da participação da sociedade no controle da aplicação da tecnologia médica, uma vez que pode representar um risco para toda a humanidade: “A Medicina existe não no interesse do nosso próprio progresso, mas no interesse da humanidade. O paciente deve ser ajudado e curado, e não servir como material de experimentação”, disse.5 Por outro lado, no livro On Being Human (Sobre o Ser Humano) opõe-se radicalmente à idéia de usarmos um ser vivo como banco de órgãos, exaurindo dessa vida qualquer traço de dignidade.6 Assim, embora o budismo não se oponha ao desenvolvimento da ciência e considere que faz parte do carma nascer numa época em que a Medicina está avançada nos métodos para retardar o envelhecimento e curar determinadas doenças, a utilização da tecnologia deve estar submetida ao respeito à dignidade da vida, o que implica em se analisar vários aspectos, desde o nível de certeza da morte do doador, nos casos de doação, até o uso do ser humano como material de experimentação, no caso da clonagem e outros.

Tateigi — Portanto, como praticantes budistas, temos a condição e devemos evocar o poder da prática no sentido de promover a transformação dos sofrimentos da doença e morte. Hoje urge a necessidade de um sistema ético a nortear os avanços da biotecnologia. Parece soar como aberração a clonagem de animais e até seres humanos, como muitos cientistas desejam aventurar-se. Por outro lado, soa como maravilhoso a solução de inúmeros males de saúde, substituindo órgãos deficientes por órgão transplantados, ou mesmo clonados sadios. Ou, mais recentemente, por células-tronco para resolução de várias doenças. Como já dito, doar ou não doar os órgãos é uma questão completamente pessoal. Contribuir para que a pessoa melhore sua saúde não é o problema. Mas, independentemente de uma bioética estabelecida em senso comum a nortear nossos avanços nas ciências médicas, um ponto é fato: não se pode mudar o carma da noite para o dia. Portanto, seja por meio de um órgão transplantado, ou células-tronco embrionárias, não se pode dizer simplesmente que a partir desse momento a pessoa não tem mais este carma de doença, pois não se pode fugir do seu mau destino. Por isso, é muito importante refletir sobre a condição de vida, encarando-a com a responsabilidade e compreensão do princípio de causa e efeito. Ou seja, a solução não está fora, mas fundamentalmente dentro de si próprio. Com a prática, podemos transformar positivamente o mau carma criado no passado, evitando, dessa forma, darmos voltas e mais voltas para depararmo-nos com ele novamente no futuro. Este é o grande diferencial da prática budista!

Compartilhar nas