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Nam Myoho Rengue Kyo

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01/09/2005

Nam Myoho Rengue Kyo

NAM

Nam é a transliteração da palavra sânscrita namas. Na carta “O presente de arroz”, Daishonin esclarece o significado de nam: “A palavra namu ... significa ‘devotar a própria vida’. ‘Devotar a própria vida’ corresponde a oferecer a vida ao Buda.”6 E no Ongui Kuden (Registro dos Ensinos Orais) ele explica que nam significa devotar tanto o corpo como a mente — ou seja, os aspectos físico e espiritual da vida. Uma questão imediata surge: A quê devemos nos devotar? No Budismo de Nitiren Daishonin há dois modos de descrever o objeto de devoção: como Lei, ou a verdade absoluta, que é o Myoho-rengue-kyo, e a Pessoa, ou o Buda que manifestou a Lei em sua vida. Em outras palavras, a Pessoa e a Lei são fundamentalmente unas: a unicidade de Pessoa — o próprio Daishonin — e a Lei — o Nam-myohorengue- kyo — está incorporada no mandala que Nitiren Daishonin inscreveu, o objeto de devoção chamado Gohonzon (Honzon, em japonês, significa “objeto de devoção”, e go é um prefixo honorífico).

No Budismo de Nitiren Daishonin, o termo nam indica nossa devoção ao Gohonzon. Portanto, nam tem dois sentidos: um deles é que devotamos nossa vida ou a fundimos com a realidade fundamental, imutável, e outro é que, por meio dessa fusão, somos simultaneamente capacitados a evidenciar uma infinita sabedoria que atua de acordo com nossas condições instáveis. Esta última é a sabedoria por meio da qual nós, seres humanos, podemos experimentar infinita alegria e liberdade apesar de todas as incertezas da vida diária.

Como um aparte, podemos notar que, enquanto a palavra nam deriva do sânscrito, Myoho-rengue-kyo vem do chinês. A junção de uma língua indo-européia e uma língua oriental na frase Nam-myoho-rengue-kyo nos dá uma idéia da universalidade do ensinamento de Nitiren Daishonin.

MYOHO

A palavra myoho significa literalmente “Lei Mística”. A Lei, ou realidade fundamental, é descrita como myo (místico) porque é infinitamente profunda e transcende todos os conceitos ou formulações da mente humana. No escrito “Sobre atingir o estado de Buda nesta existência”, Nitiren Daishonin esclarece sobre esse ponto: “Qual é então o significado de myo? Myo é simplesmente a misteriosa natureza de nossa vida a cada instante, que a mente não consegue compreender e que não pode ser expressa em palavras. Quando observamos nossa própria mente em qualquer momento, não percebemos a cor nem a forma para comprovar sua existência. No entanto, não podemos dizer que ela não existe pelo fato de incessantes pensamentos nos ocorrer. A mente não pode ser considerada como algo existente nem inexistente. A vida é de fato uma realidade que transcende tanto as palavras como os conceitos de existência e inexistência. Ela não é nem existência nem inexistência. No entanto, mostra características de ambas. É uma entidade mística do Caminho do Meio, ou seja, a realidade fundamental. Myo é o nome dado à natureza mística da vida, e ho, a suas manifestações.”7

Nesse trecho, Nitiren Daishonin interpreta myo como a realidade fundamental que transcende nossa capacidade de perceber e ho, como o mundo dos fenômenos em constante mutação. A união desses dois conceitos, conforme apresentados pela única palavra myoho, reflete a unicidade da realidade fundamental e do mundo manifesto. Em outras palavras, de acordo com o budismo não há nenhuma distinção entre a realidade fundamental e a cotidiana. Se compreendemos isso, somos iluminados; se não, estamos vivendo na ilusão. De acordo com Nitiren Daishonin: “Quando uma pessoa é dominada pela ilusão, é chamada de mortal comum, mas quando iluminada, é chamada de Buda.”8 Neste contexto, “ilusão” significa todos os nove estados dos Dez Mundos, do Inferno ao de Bodhisattva, ao passo que “iluminação” descreve o mundo do estado de Buda. Dessa forma, os nove mundos e o estado de Buda, juntos, estão contidos em um único momento. No Ongui Kuden, Nitiren Daishonin discorre um pouco mais a respeito: “Myo indica a natureza iluminada (estado de Buda), ao passo que ho indica a escuridão ou ilusão (dos nove primeiros dos Dez Mundos). A unicidade da ilusão e da iluminação é chamada myoho, ou Lei Mística.”9

Talvez o significado do termo “unicidade da ilusão e da iluminação” possa ser ilustrado por analogia a vários fenômenos do mundo físico. Por exemplo, os glóbulos brancos que destróem os germes e desempenham um papel fundamental na cicatrização de ferimentos, sendo, portanto, indispensável para a sobrevivência do indivíduo. No entanto, o aumento anormal desses glóbulos pode causar doenças fatais como a leucemia. Talvez possamos expressar essa dicotomia na natureza essencial dos glóbulos brancos como a unicidade do “aspecto iluminado” e o “aspecto ilusório” dos glóbulos. Este é um único exemplo do modo como todos os fenômenos têm tanto aspectos positivos como negativos. “A unicidade de ilusão e iluminação” significa que, como potenciais, a ilusão — os nove primeiros dos Dez Mundos — e a iluminação — o estado de Buda — coexistem não apenas na vida individual, mas também no Universo. Portanto, conforme a realidade se manifesta, um mais do que outro será expresso, dependendo se é ou não despertado para a realidade fundamental.

Na escritura “O Daimoku do Sutra de Lótus”, Nitiren Daishonin explica que o caractere myo de Nam-myohorengue- kyo tem três significados distintos: abrir, ser perfeitamente dotado e reviver. Por “abrir” ele quis dizer libertar ou dissipar a escuridão da ilusão ao revelar a natureza de Buda: a vida de uma pessoa que desperta para sua própria natureza de Buda se “abre” para tornarse coextensiva com o Universo. A frase “ser perfeitamente dotado” implica que a Lei Mística incorpora todos os fenômenos e está inerente em tudo. A Lei Mística compreende todos os Dez Mundos e todos os três mil domínios, permeando e integrando a realidade de todos os fenômenos. Portanto, a expressão “ser perfeitamente dotado” pode também significar que a Lei Mística contém todas as verdades e benefícios. A terceira definição, “reviver”, significa fundamentalmente possibilitar um indivíduo a atingir o estado de Buda. Por exemplo, todos — mesmo o pior dos malfeitores e todas as outras pessoas, cujo potencial para o estado de Buda foi negado nos ensinos pré-Sutra de Lótus — podem atingir a suprema iluminação por meio da Lei Mística do Myoho-renguekyo. Se analisarmos o termo “reviver” em um sentido mais amplo, podemos dizer que significa criar valor. Um tipo de revivescência é realizado quando matérias insensíveis como madeira e pedra são transformadas para construir um prédio. Uma outra forma de revivescência está no ato de reformar nossa vida para que possamos atingir a iluminação e contribuir para a felicidade de outras pessoas. “Reviver” também significa que todas as leis e ensinamentos embasados na Lei Mística assumem sua correta perspectiva e revelam aspectos importantes da verdade fundamental. Similarmente, quando embasamos nossa fé na Lei Mística, todas as nossas habilidades, traços característicos e outras qualidades pessoais ganham vida, expressando-se de um modo a contribuir não apenas para o próprio crescimento, mas também em benefício dos outros.

Uma interpretação conclusiva de myoho feita por Nitiren Daishonin consta na escritura “A herança da suprema Lei da vida”: “Myo representa a morte, e ho, a vida.” 10 Não podemos compreender nossa vida intelectualmente na condição da morte, e muito menos oferecer respostas para as questões: para onde vai a vida após a morte e como é essa vida? Mesmo que acreditemos que a vida retorne à vida cósmica, isto é algo difícil de compreender. Portanto, a morte correponde a myo, significando “místico” ou “inconcebível”. A vida, em contraste, expressa-se em várias formas visíveis, conforme exemplos claros, manifestando um ou outro dos Dez Mundos por meio da influência dos dez fatores. Por exemplo, se não temos nada para comer durante um longo tempo ficamos famintos e caímos no mundo da Fome; de forma semelhante, se alguém nos ridiculariza tendemos a perder a razão, revelando o estado de Ira. É assim que a vida humana opera.

A vida, então, corresponde a ho ou Lei. A vida e a morte são duas manifestações contrastantes da realidade fundamental, ou Lei Mística. Podemos dizer que a realidade fundamental manifesta-se simplesmente na realidade diária da vida e da morte.

RENGUE

O significado literal de rengue é “flor de lótus”. O lótus é uma planta muito antiga, admirada em muitas culturas e tradições. Os fósseis de lótus mais antigos datam do período Cretáceo, era geológica que durou de 135 milhões a 65 milhões de anos. Estima-se que um fóssil de lótus descoberto na região de Quioto, no Japão, em 1933, idêntico ao que conhecemos hoje, tenha de dez mil a vinte mil anos.

Em Moenjodaro, no vale do rio Indo, Paquistão, há antigas ruínas do que foi outrora uma grande cidade. No meio dessas ruínas, arqueólogos encontraram um artefato conhecido como “Grande Banheira”, que se acredita, era usada em rituais de purificação. Uma estátua encontrada ali — e atualmente à mostra no Museu de Belas-Artes de Boston — revela uma mulher com os cabelos adornados com flores de lótus, um claro sinal de que a civilização do vale do rio Indo tinha grande respeito pelo lótus.

Em 1985, quando me encontrei com o Dr. Karan Singh, famoso acadêmico indiano, nosso diálogo girou em torno dessa planta. Ele supunha que o lótus fosse encontrado em toda a Índia. Como muitos, achava que, pelo fato de o budismo ter-se propagado por toda a Índia antiga, a flor de lótus deveria ser igualmente encontrada em todas as partes. Fiquei surpreso quando o Dr. Singh disse-me que o lótus cresce somente na região do Himalaia, uma área muito percorrida por Sakyamuni ao propagar a doutrina. O Dr. Singh comentou ainda sobre os vários significados do símbolo do lótus em toda a longa história da Índia.

Primeiro, ele disse, a flor representa a fertilidade, a prosperidade e a longevidade. Segundo, de acordo com a mitologia indiana, acredita-se que o criador do Universo, Brahma, tenha surgido de um lótus. Terceiro, a planta floresce na lama, mostrando que a beleza pode revelar-se mesmo das coisas que não são belas ou puras. Quarto, a flor de lótus permanece seca enquanto flutua na superfície da água, o que simboliza a virtude de manter-se imperturbável em meio às atribulações da vida. Quinto, era prática nas escrituras sânscritas que se alguém quisesse louvar a beleza dos olhos de uma mulher, comparava-os com as flores de lótus. Sexto e último, as flores de lótus fecham-se à noite e abrem ao amanhecer, uma metáfora do modo como nossa mente pode abrir-se para uma filosofia sublime.

A flor de lótus é mencionada no Rigveda, a mais antiga escritura indiana, e acredito que as várias interpretações do Dr. Singh têm suas origens no antigo comportamento indiano com relação à planta. Na Índia antiga, o lótus era apreciado de duas formas: era considerado uma planta que representava um ideal de beleza e, ao mesmo tempo, valorizado por suas propriedades medicinais. No segundo caso, seu rizoma era uma fonte de alimento e de energia e usado no preparo de vários medicamentos — afirma-se que Sharihotsu, um dos discípulos do Buda Sakyamuni, foi curado de uma doença crônica com o rizoma do lótus. A flor era usada como remédio para distúrbios renais e estomacais, enquanto suas folhas eram utilizadas para estancar hemorragias.

Tem-se conhecimento também da existência do lótus ao longo do rio Amarelo e em outras regiões da China desde os tempos antigos. Versos de exaltação à planta aparecem no Shih Ching (Livro de Poesias), uma antologia de aproximadamente trezentos poemas que datam do início da dinastia Chou, cerca de três mil anos atrás. A flor de lótus, devido à sua aparência majestosa, foi por muito tempo considerada pelos chineses como um símbolo de virtude humana, como consta, por exemplo, no ensaio “Sobre o amor e o lótus” de autoria de Chou Tun-i (1017–1073), que viveu durante a dinastia Sung. Presentear alguém com uma semente de lótus equivalia, portanto, a reconhecer a bondade dessa pessoa e expressava o desejo de mantê-la em sua companhia. A flor de lótus foi por muito tempo usada na China em ocasiões auspiciosas para simbolizar a felicidade — por exemplo, sua imagem adornava freqüentemente implementos usados em cerimônias de casamento. A metáfora da flor também era usada para representar belas mulheres.

No Egito, hieróglifos retratando o lótus aparecem em murais e papiros encontrados nas pirâmides. Parte dos textos hieroglíficos empregam a planta como um símbolo da divindade que concede o dom da imortalidade. Nas ruínas de templos egípcios foram encontrados colunas de pedra com capitéis decorados com flores de lótus, e essa flor embelezou muitas outras obras de arte e de arquitetura egípcias. É assim que o lótus, que floresceu em profusão ao longo do Nilo, era visto pelos antigos egípcios, quando abria suas flores ao alvorecer, como um símbolo de renovação da vida.

Na Grécia antiga, o símbolo do lótus era usado para adornar santuários de templos. Escavações de templos antigos situados no monte Olimpo, nordeste da Grécia, revelaram decorações arquitetônicas compostas por arabescos intercalados com figuras de flores de lótus.

A expedição de Alexandre, o Grande, à Índia, por volta de 326 a.C., iniciou a síntese da cultura budista e a civilização helênica que gerou as ricas artes da região de Gandhara, onde hoje é o norte do Paquistão e o leste do Afeganistão.

A influência artística gandhariana percorreu o leste pelo Caminho da Seda, e então, pela China e a Península Coreana chegou ao Japão, onde, do século VI ao VIII (os períodos Asuka, Hakuho e Tempyo), contribuiu grandemente para o desenvolvimento da arte nipônica. Em diversas obras de arte antigas de Gandhara, China e Japão a figura de pétalas de lótus aparece freqüentemente. Há alguns anos fui presenteado pelo Instituto de Dunhuang da China com uma reprodução de uma pintura do teto da famosa Gruta de Mogao, em Dunhuang, no oeste da província de Gansu, norte do Tibet. Fiquei maravilhado ao observar que aquelas pinturas também representavam uma bela flor de lótus.

A flor de lótus é mencionada no famoso texto budista “Questões do Rei Milinda” (ou Menander), um diálogo entre o rei greco-indiano Menander e o monge budista Nagasena — supostamente ocorrido tempos depois da expedição de Alexandre, o Grande, à Índia. Nesse diálogo, a flor de lótus aparece como uma metáfora aos ensinamentos budistas, ou à grandiosidade da Lei. O Tratado sobre o Sutra da Grande Perfeição da Sabedoria, uma extensa obra Mahayana atribuída a Nagarjuna, diz que a razão de as imagens do Buda serem adornadas com pedestais de lótus é que a planta dignifica o local da propagação da Lei Mística.

A flor de lótus também é exaltada na literatura japonesa, em obras como Registro das Antigas Questões e na antologia de poesias conhecida como Coletânea de Dez Mil Folhas, do século VIII. Sei Shonagon refere-se à flor de lótus em seu Livro de Cabeceira, do século XI, como sendo superior a todas as outras flores. Posteriormente, no período Edo (1600–1867), o estilo poético conhecido como haiku tornou-se popular, e esses poemas contêm freqüentemente referências elogiosas às belas flores e às largas folhas do lótus. De fato, para os japoneses, a flor dessa planta difere das flores da ameixeira e cerejeira, que crescem na terra: ela representa a pureza e o princípio universal que fundamenta a totalidade da existência. O monte Fuji é comumente comparado ao lótus de oito pétalas, devido ao formato de sua cratera vista do alto.

As sementes do lótus são famosas por resistir por longos anos. Estima-se que as sementes descobertas em uma jazida de turfa na província de Tiba, no Japão, pelo falecido Dr. Itiro Oga, da Universidade de Tóquio, tenham aproximadamente dois mil anos, e algumas delas germinaram com sucesso e suas mudas foram cultivadas em muitas partes do país. É como se as sementes de lótus oferecessem algum tipo de testamento da eternidade da vida. Podemos então dizer que as qualidades de pureza e eternidade implícitas na imagem da flor de lótus têm atraído a atenção das pessoas do mundo inteiro desde os tempos antigos. Talvez tenha sido essa conotação de pureza e eternidade que fez com que a planta se tornasse símbolo da Lei ou dos ensinamentos de Sakyamuni. Em sua obra Hokke Guengui (Profundo Significado do Sutra de Lótus), Tient’ai explica que a palavra “lótus” no título do sutra deve ser compreendida não apenas como uma metáfora à Lei Mística, mas também como a própria Lei: “O nome ‘lótus’ não é utilizado para simbolizar algo qualquer. É o próprio ensino exposto no Sutra de Lótus. Esse ensino é puro e revela a profunda relação de causa e efeito. Por isso é chamado lótus. O nome designa a essência da meditação sobre a Lei do Sutra de Lótus, e não é uma metáfora ou termo figurativo. (...) Mas, pelo fato de o lótus da Lei ser de difícil compreensão, a metáfora da planta é apresentada. (...) Assim, uma metáfora facilmente compreensível de um lótus real é usada para esclarecer o lótus de difícil compreensão que é a essência do Sutra de Lótus.”11

Nitiren Daishonin elucida sobre o profundo princípio indicado pelo sutra: “Myoho-rengue-kyo é comparado ao lótus. (...) De todas as flores, ele [o Buda] selecionou a flor de lótus para simbolizar o Sutra de Lótus. Há uma razão para isso. Algumas plantas florescem primeiro e depois dão frutos, ao passo que em outras os frutos aparecem antes das flores. Algumas geram apenas uma flor, mas muitos frutos, outras dão frutos sem florir. Desse modo, há várias espécies de plantas, mas o lótus é o único que produz flores e frutos simultaneamente. O benefício de todos os outros sutras é incerto, pois eles ensinam que a pessoa deve primeiro fazer boas causas e, só então, poderá tornar-se um buda em algum tempo depois. Com relação ao Sutra de Lótus, a mão que o segura atinge imediatamente a iluminação, e a boca que o recita instantaneamente entra no estado de Buda, assim como a Lua reflete-se na água no momento em que se eleva por detrás das montanhas do leste, ou como o som e seu eco surgem concomitantemente.”12

Em outra escritura ele declara: “Antes, o supremo princípio não tinha nome. Quando o sábio observava os princípios e atribuía nomes a todas as coisas, ele percebeu a existência desta Lei maravilhosa e única que possui simultaneamente a causa e o efeito, e a denominou Myohorengue, o lótus da Lei Mística. Esta Lei única, Myoho-rengue, incorpora todas as leis ou fenômenos incluindo os Dez Mundos e os três mil domínios, e está presente em todos eles. Qualquer um que pratique esta Lei obterá simultaneamente a causa e o efeito do estado de Buda.”13

O lótus produz flores e sementes ao mesmo tempo, portanto, representa “a Lei maravilhosa e única que possui simultaneamente a causa e o efeito”. Este princípio, a simultaneidade de causa e efeito, significa que os nove mundos (causa) e o mundo do estado de Buda (efeito) existem simultaneamente em cada momento da vida, não havendo, portanto, nenhuma diferença fundamental entre um buda e uma pessoa comum. Em termos de prática, Daishonin ensinou que, quando uma pessoa recita Nam-myoho-rengue-kyo com fé (causa) no Gohonzon, o estado de Buda (efeito) manifesta-se instantaneamente de seu interior. É por essa razão que ele diz: “Qualquer um que pratique esta Lei obterá simultaneamente a causa e o efeito do estado de Buda.”

Sustentando tudo o que existe, seres sensíveis ou não, está a Lei da simultaneidade de causa e efeito: o tema central do budismo e analogias a ele também são encontradas em teorias científicas modernas. Como um exemplo, podemos usar um enigma do mundo da física. O que deu origem ao Universo de centenas de bilhões de galáxias, cada uma delas contendo dezenas ou centenas de bilhões de estrelas e planetas? É genericamente aceito que o Universo físico teve origem com o Big Bang, uma explosão inimaginável que se acredita ter ocorrido há bilhões de anos, e como resultado dessa explosão o Universo ainda está se expandindo. Pelo fato de o Universo ter começado a se expandir no momento exato em que veio a existir, podemos dizer que este é um instante no domínio físico que serve para ilustrar a causa e o efeito ocorrendo simultaneamente.

Chamo a atenção para uma outra maravilha. Podemos observar no zigoto humano o produto da fusão dos gametas feminino e masculino. Não mede mais que um décimo de milímetro. No entanto, contém toda a informação genética necessária para seu desenvolvimento em um ser humano adulto completo. No momento da concepção, o óvulo pode ser visto como a incorporação simultânea tanto do “efeito” como da “causa” de uma nova existência humana. De forma semelhante, a semente de uma planta exemplifica a unicidade de causa e efeito. As sementes são normalmente plantadas na primavera e frutificam no outono. Porém, de uma perspectiva bem diferente da puramente temporal, podemos dizer que na semente já existe inerentemente tanto a causa (semeadura) como o efeito (colheita). Uma profunda contemplação da lei causal que opera na vida nos leva inevitavelmente a aceitar a unicidade ou simultaneidade da causa e do efeito.

No entanto, devemos ter em mente que os exemplos citados anteriormente tratam da questão de causalidade no mundo dos fenômenos, o domínio acessível à investigação e confirmação científica. O princípio budista de causalidade, no entanto, sonda mais a fundo, penetrando os recônditos mais profundos da vida. Lida com um domínio que transcende o tempo e o espaço. Por esta razão, não há sentido em falar de causa que antecede o efeito: ambos existem simultaneamente.

Alguns tendem a associar causalidade — tanto o conceito científico como o cármico — com determinismo, devido à idéia de que uma certa causa deve inevitavelmente produzir um efeito, e que não há muito o que fazer a respeito. No entanto, esse julgamento não leva em conta nosso potencial para mudar os efeitos de nossas ações passadas por meio de causas ou ações que iniciamos a partir de agora. O budismo nos ensina que há um elemento indispensável para trazermos à tona a causalidade que está dormente nas profundezas de nosso ser. Esse elemento é uma causa externa que, quando se une a uma causa latente, produz um efeito manifesto. Sem uma causa externa apropriada, a causa e o efeito latentes que coexistem com ela permanecerão dormentes para sempre. Além disso, dependendo da natureza da causa externa — por exemplo, a nossa interação com o meio ambiente —, a forma como os efeitos latentes tornam-se manifestos pode variar grandemente. Conforme evidenciamos a suprema condição do estado de Buda do nosso interior, toda a rede de causas e efeitos que forma o nosso carma pessoal é transformada radicalmente, tendo como base a iluminação em vez da ilusão e atuando para o nosso desenvolvimento como um ser humano.

Outro atributo do lótus associado ao simbolismo budista, conforme vimos, é que a planta cresce e floresce na água lodosa e, no entanto, suas flores são puras e belas. Isso nos leva a pensar na manifestação da pura natureza de Buda na vida de uma pessoa comum, apesar de suas ilusões e desejos mundanos. O 15º capítulo do Sutra de Lótus, “Emergindo da Terra”, descreve aqueles que abraçam a Lei Mística como pessoas “nãocorrompidas pelas questões mundanas, como uma flor de lótus na água”.

Esse conceito é digno de nota, pois envolve uma das questões fundamentais do budismo.

A existência humana é comumente vista como um turbilhão de desejos e impulsos que dão surgimento a vícios e sofrimentos. Uma pessoa dominada unicamente por seus desejos e impulsos não pode desfrutar identidade própria nem liberdade. Em vez disso, está sempre à mercê das condições mutáveis em sua vida. Exatamente por esta razão, alguns ensinamentos religiosos têm enfatizado que a erradicação dos desejos pessoais é o único caminho para a salvação. Contudo, o desejo é uma função inerente à vida e, em análise final, não se pode extingui-lo sem extinguir a própria vida. O desejo, como uma função inata da nossa vida, pode ser visto não como algo necessariamente prejudicial, mas sim neutro, que tem tanto o potencial para prejudicar como para beneficiar a existência humana. A questão não é a supressão de nossos desejos, mas sim como controlá-los e direcioná- los de forma que atuem para desenvolver as virtudes humanas. Esse é o propósito do budismo. De acordo com os ensinamentos budistas, uma vez que ativamos o supremo estado de Buda inerente em cada um de nós, ele eleva e redireciona nossos desejos para o crescimento pessoal e a iluminação. Se, ao contrário, deixamos nossos desejos “soltos”, sem antes orientá-los para um estado de vida mais elevado, eles irão operar somente de uma forma destrutiva, gerando angústia e, talvez, até mesmo ameaçando nossa existência.

O significado do budismo reside na revelação da natureza de Buda em todos os seres e no estabelecimento de um método prático pelo qual pode-se manifestá-la, de forma que os seres humanos possam extrair o máximo significado possível de sua existência individual. Essas duas características são de especial relevância para a civilização moderna, que se encontra presa num tipo de areia movediça espiritual.

A chave para escapar da areia movediça é manifestar o supremo potencial humano que existe em cada um de nós. Temos de lutar para atingir um estado de espírito mais elevado e para encontrar um significado mais profundo em nossa vida, tendo ao mesmo tempo de lidar com várias dificuldades diárias. Entretanto, quando nossa vida estiver firmemente enraizada na natureza de Buda, poderemos direcionar todos os nossos problemas e sofrimentos de forma que realmente venham a contribuir para o nosso desenvolvimento espiritual. Os desejos mundanos, então, podem ser canalizados devidamente para desenvolvermo-nos espiritualmente; só quando são canalizados indevidamente é que se tornam prejudiciais.

É comum nas escrituras budistas a menção do lótus de “oito pétalas”, embora na verdade tenha de vinte a vinte e cinco pétalas — e até mais de cem, se a planta tiver pétalas duplas ou múltiplas. Quando o número oito é empregado nesse contexto nas escrituras budistas, significa que a flor de lótus tem muitas pétalas, e não o contrário ou que tenha um número exato. O número oito também tem um significado tradicional de “plenitude” ou “totalidade”, que é reconhecido quando as escrituras falam do lótus de oito pétalas.

Dessa forma, qual o significado da flor de oito pétalas? Nitikan Shonin, o 26º sumo prelado, argumenta em seu comentário sobre “A Entidade da Lei Mística” de Daishonin que o lótus de oito pétalas existe em cada um de nós. Ele salienta a semelhança entre a aparência e a forma como estão dispostos os pulmões, o coração e outros órgãos da caixa torácica e as pétalas do lótus, e descreve a primeira como uma expressão física dentro do nosso corpo do lótus da Lei Mística que temos inerente. Esses dois conceitos da entidade do lótus — sua expressão em nosso corpo e o lótus da Lei Mística — foram, na realidade, apresentados primeiro por Tient’ai. E foi como seguidor de Tient’ai que Dengyo, sacerdote japonês, aprendeu os conceitos e, em 805 d.C., levouos para seu país. Nitikan Shonin empregava essas metáforas para ajudar seus contemporâneos a compreender que a vida é una com a entidade da Lei Mística.

Em uma de suas escrituras, Nitiren Daishonin diz: “No que diz respeito à maravilhosa entidade de Myoho-rengue- kyo, quando indagamos sobre que tipo de entidade é, veremos que é o lótus branco de oito pétalas inerente em nossa vida.”14 Em outras palavras, o lótus branco de oito pétalas representa a entidade de Myoho-rengue- kyo. Aqui, a idéia da flor de lótus é usada não como uma metáfora, mas indica a “Lei maravilhosa e única que possui simultaneamente a causa e o efeito” — ou Myoho-rengue-kyo. Sobre esse ponto Nitikan Shonin acrescenta: “Ocorre, portanto, que a vida e seu ambiente, como também a causa e o efeito, tudo constitui o lótus branco de oito pétalas inerente em nós, ou seja, o objeto de devoção oculto nas profundezas do ensino essencial do Sutra de Lótus.”15

A Lei Mística, ou a realidade fundamental de tudo, expressa nesse trecho como o “lótus branco de oito pétalas inerente em nós”, foi incorporada por Nitiren Daishonin na forma de um mandala, o Gohonzon — o objeto de devoção em seu ensinamento.

Uma explanação do significado das palavras “flor de lótus da Lei Mística”, que compreende o título original do Sutra de Lótus em sânscrito, pode até certo ponto ter sido compilada de uma interpretação do próprio texto, mas em nenhuma parte do sutra encontramos uma declaração definitiva da Lei referida no título. Nesse ponto se encontra a importância do Budismo de Nitiren Daishonin: ele deu à Lei a expressão concreta Nam-myoho-rengue- kyo. Alguns dos sacerdotes chineses que tiveram acesso ao Sutra de Lótus por meio da tradução de Kumarajiva reconheceram sua profundidade espiritual. Por exemplo, Chu Tao-sheng, discípulo de Kumarajiva, escreveu em seu comentário sobre o sutra que ele abrangia todos os princípios e todos os benefícios. Mais tarde, Tient’ai expôs os ensinamentos detalhados e sistematizados com base no sutra. No entanto, apesar de toda a atenção que o Sutra de Lótus atraiu, está claro que, ao examinarmos o texto, algumas verdades ainda permanecem ocultas. Foi somente após ter tomado fé e estudado o Budismo de Nitiren Daishonin que vim a compreender isso. Daishonin interpreta os vinte e oito capítulos do Sutra de Lótus como uma elucidação da Lei Mística, expressa por ele como Nam-myoho-rengue-kyo, e da iluminação do Buda Sakyamuni, que despertou para esta Lei por si só. Contudo, devido a essa Lei estar além da compreensão comum, Daishonin a incorporou na forma de um mandala. Ele ensinou que, recitando Nam-myoho-rengue-kyo e tendo fé neste mandala, todos podem atingir a iluminação.

Para ilustrar resumidamente, a relação entre o lótus e a realidade fundamental faz-me lembrar de um fato ocorrido com o impressionista francês Claude Monet. Foi René Huyghe, historiador e crítico de arte francês, quem me contou. Em 1890, Monet adquiriu um terreno pantanoso que atravessava a trilha que conduzia à sua casa e lá fez um jardim. Nessa área corria o rio Epte, afluente do Sena. Monet desviou o seu curso e construiu um lago de nenúfares e uma ponte em estilo japonês sobre ele. Essa era a exótica “terra do lótus”, na qual, durante seus últimos anos, ele meditou e pintou. Monet costumava sentar-se à margem do lago, inclinando-se para fitar a superfície da água que, assim como um espelho, refletia o céu — mas, para os olhos de Monet, o lago tornou-se o céu: ele via um aglomerado de nuvens movendo-se e as plantas aquáticas ondulando-se. Seus olhos viam tufos de nenúfares e flores brotando da superfície da água — que para ele, naquele momento, haviam emergido com tudo o mais ao seu redor. Conforme os ”olhos” de sua mente, aquilo era um todo unificado: não havia mais nenhuma distinção entre a água e a terra ou entre a água e o céu. Somos afortunados por poder ver os frutos de suas especulações em suas pinturas dos nenúfares. Huyghe observou que, se compararmos essas pinturas de Monet com os desenhos feitos por artistas chineses nos séculos VIII e IX, odemos notar que Monet, embora fosse ocidental tanto em termos de nacionalidade como de tradição, prezava a visão de mundo unificada que caracterizava a arte chinesa.

KYO

Kyo é a tradução japonesa da palavra “sutra”, ou seja, o ensinamento do Buda Sakyamuni. Pelo fato de Sakyamuni ter ensinado por meio da pregação — ou seja, ele usou a própria voz — a palavra kyo é algumas vezes interpretada como “som”. Por exemplo, Tient’ai escreveu em sua obra Hokke Guengui que “a voz executa o trabalho do Buda. Portanto, é chamada kyo”. Nitiren Daishonin também declarou no Ongui Kuden: “Kyo corresponde às palavras e ao discurso, ao som e à voz de todos os seres.”16 Ele, portanto, revelou que a Lei fundamental por meio da qual o Buda atingiu a iluminação está inerente em todos os seres vivos.

O caractere chinês usado para designar kyo significa o ensino que deve ser preservado e transmitido para a posteridade. Esse caractere era empregado na China com o significado de “livros” ou “clássicos”, como no caso do confucionismo e do taoísmo. Quando as escrituras budistas foram introduzidas da Índia, o caractere era usado com o significado de “sutra”. É nesse sentido que Nitiren Daishonin interpreta a palavra quando diz: “Aquilo que é eterno, que se propaga pelas três existências, é chamado kyo.”17

A iluminação do Buda, expressa na voz de sua pregação, é kyo, e a verdade com a qual ele se iluminou é eterna, propagando-se pelo passado, presente e futuro. Quando despertamos para esta verdade, compreendemos o aspecto eterno de nossa própria vida, um aspecto que transcende as mudanças do mundo físico e o ciclo de nascimento e morte.

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