Estudo
TC
[1] A suprema Lei da vida e da morte
Empenhar-se com base na unicidade de mestre e discípulo para abrir o caminho da verdadeira felicidade de toda a humanidade
01/08/2007
Panorama geral
Não existe mistério maior do que a vida e a morte. De fato, ambas constituem temas de interesse primordial para as religiões. De onde viemos e para onde vamos? Por que nascemos como seres humanos? Os acontecimentos em nossa vida são acidentais ou possuem algum propósito maior? Qual o significado da morte? Ao morrermos, nossa vida se reduz ao nada, como tantas pessoas acreditam no mundo moderno? Será que nos reintegramos a uma “alma” brilhante e imortal, como defendem muitas correntes religiosas tradicionais do Oriente e Ocidente? Ou, como ensina o Buda Sakyamuni [em sua doutrina do Caminho do Meio], não seria nem uma coisa nem outra?1
A sabedoria do budismo transcende pontos de vista extremos como a aniquilação e a permanência
“A herança da suprema Lei da vida” é um escrito de Nitiren Daishonin que expõe questões de importância fundamental referentes à vida e à morte. Essas questões são também o propósito principal do budismo e a base da religião. A palavra “suprema”, do título, denota justamente a natureza essencial desse tema.
O Sutra de Lótus usa o termo “única grande razão” para expressar o propósito fundamental com que os budas surgem neste mundo: possibilitar a todos os seres vivos perceber a sabedoria de Buda inerente e atingir a iluminação.2 A questão de máxima importância sobre a vida e a morte que Daishonin ensina nesse escrito se relaciona intimamente com esse ideal da iluminação universal do Sutra de Lótus.
O conceito budista de “origem dependente”3 — uma das verdades em relação às quais Sakyamuni se iluminou — esclarece os sofrimentos do envelhecimento e da morte como produtos da escuridão ou ignorância inata que se aloja no ser humano. O Buda ensina que esses sofrimentos podem ser superados extinguindo-se essa escuridão intrínseca.
A capacidade ou percepção que possibilitou a Sakyamuni atingir a iluminação é a sabedoria de vencer a ilusão e o sofrimento concernentes à morte. Com base nessa sabedoria, o Buda refutou os dois conceitos mais comuns ou prevalecentes sobre a morte — duas posições extremas —, ambos considerados por ele como errôneos, pois não possibilitam às pessoas transcender o medo e a incerteza em relação à morte. A primeira dessas concepções é a morte vista como aniquilação ou extinção completa do “eu” (a idéia de aniquilação); a outra, é a da morte como continuação do “eu” sob a forma de uma alma ou espírito imortal e invariável (a idéia de permanência). Ambas as visões consideram a questão da vida e da morte somente como espaço de tempo transcorrido entre o nascimento e a extinção. Nesse caso, vida e morte são vistas como fenômenos opostos. Dessa forma, nenhuma das idéias incorporam uma sabedoria profunda capaz de perceber corretamente a realidade da vida e da morte.
Acredito que não seria exagero dizer que a maioria das pessoas, cientes de sua própria mortalidade, aderem a uma dessas duas visões. Contudo, a noção da morte como aniquilação traduz-se em temores e angústias com relação ao instante final. Quanto à idéia da morte como permanência, deriva do apego ao “eu”.
Nitiren Daishonin também esclarece que estas duas noções não ajudam a pessoa a conquistar a verdadeira felicidade. Por exemplo, em “Carta de Sado”, ele escreve que as pessoas tendem a temer a morte e apegar-se à vida: “As coisas mais terríveis deste mundo são o calor do fogo, o brilho das espadas e a sombra da morte. Se até os cavalos e bois têm medo da morte, não é de se surpreender que os seres humanos também tenham. Se mesmo um leproso luta pela vida, imagine uma pessoa saudável”. (Os Escritos de Nitiren Daishonin [END], v. 5, p. 13-14.)
Para explicar a sabedoria do budismo, ele cita em seguida o ensino exposto por Sakyamuni no Sutra de Lótus: “O Buda ensinou que o ato de cobrir todo um sistema de grandes mundos4 com os sete tipos de tesouros não se compara a oferecer o dedo menor ao Buda e ao sutra [de Lótus].5 O garoto Montanhas de Neve6 ofereceu o próprio corpo e o asceta Aspiração à Lei7 removeu a própria pele [para nela gravar os ensinos do Buda]. Como não há nada mais precioso que a própria vida, aquele que a dedica à prática budista, com certeza, atingirá o estado de Buda”. (END, v. 5, p. 14.)
A primeira frase refere-se a uma passagem do 23º capítulo do Sutra de Lótus, “Os Feitos do Bodhisattva Rei dos Remédios”, que destaca que o maior oferecimento que alguém poderia fazer é dedicar a própria vida — que preza e valoriza como seu bem mais precioso — em prol do budismo. Fundamentado nessa frase, Daishonin declara que, quando dedicamos nossa vida ao budismo de forma abnegada, assim como o garoto Montanhas de Neve e o asceta Aspiração à Lei, podemos atingir a iluminação. A prática, ensina Daishonin, é, portanto, o caminho supremo para a iluminação e a felicidade.
No mesmo escrito, Daishonin focaliza a insensatez de viver com base em qualquer uma das duas idéias mencionadas: a morte como aniquilação ou como permanência. Para ilustrar, ele descreve como os peixes e as aves, temerosos por sua segurança, fazem de tudo para se esconder dos predadores, mas acabam perdendo a vida tolamente, enganados por iscas ou armadilhas.8
Em “Carta de Sado”, Nitiren Daishonin descreve a sabedoria do Buda, que transcende esses dois conceitos sobre a morte, como aniquilação e permanência. Ele diz que essa sabedoria consiste em viver, atuar e dedicar-se abnegadamente ao budismo. Esse ponto é de suma importância.
Quando as pessoas consideram a questão da vida e da morte tomando como início o momento do nascimento, naturalmente acabam se perguntando se sua identidade ou seu ser acabará com a morte ou continuará depois dela. Isso não deveria causar surpresa, já que os seres humanos, mesmo cientes de sua natureza finita e mortal, são incapazes de saber por experiência como é a vida depois da morte ou como é o pós-morte. Dessa forma, por mais que analisemos exaustivamente essa questão com base nesse ponto de vista, não chegaremos a nenhuma compreensão essencial ou sabedoria suprema. Por exemplo, a visão da morte como aniquilação total da existência jamais libertará o ser humano do medo ou da angústia ante a morte. Por outro lado, a idéia da morte como permanência, que contempla a continuação do “eu” sob a forma de uma alma imortal e imutável, freqüentemente expressa somente o próprio desejo da imortalidade. Em última análise, não se traduz numa sabedoria que permite à pessoa elevar seu estado espiritual, mas sim, o contrário, fortalece e aprofunda ainda mais sua ilusão e seu apego ao “eu”.
Obviamente, muitas filosofias e tradições religiosas do Oriente e do Ocidente postulam a existência de uma entidade espiritual eterna que transcende o “eu” atual. Mas, mesmo que consigam transmitir às pessoas certa paz interior em relação à morte, falham em prover sabedoria para elevar o modo de vida delas. Em vez disso, fazem com que desenvolvam um modo de vida limitado pelo apego ilusório ao “eu” e pelos sofrimentos da velhice e da morte, como mencionei anteriormente.
Segundo escritos budistas, quando questionado se sua vida continuaria depois da morte, Sakyamuni não respondia nem sim nem não.9 Isso porque optar por uma resposta não ajudaria as pessoas a elevar seu estado de vida. Ao contrário, só contribuiria para aprofundar o sofrimento e a ilusão em torno da idéia da morte.
Em “Carta de Sado”, Daishonin ensina a seus seguidores — que enfrentavam forte repressão — o modo de vida de dedicar-se abnegadamente ao budismo. Em outras palavras, ensinou a eles o espírito de não poupar a própria vida e o critério básico de conduzir uma existência que valoriza a Lei acima de tudo. Desse modo, buscou ajudar seus discípulos a transcenderem o apego ao “eu” — a fonte de todas as ilusões e sofrimentos com relação à morte — e a se libertarem realmente da ilusão e do sofrimento.
Ninguém pode desfrutar a verdadeira felicidade se não se libertar do sofrimento da morte. Mas libertar-se da angústia que a morte gera não é algo que possa ser feito por meio de teorias ou do intelecto. A vida e a morte compreendem, em si mesmas, o ritmo eterno e magnífico do Universo. Quando conseguimos compreender a grandiosidade desse “eu superior” existente em nós e que é parte desse ritmo, quando sentimos nas profundezas do nosso ser que esse ritmo é o pulsar primordial de nossa vida, então, conseguimos superar o sofrimento da morte. O caminho da libertação interior encontra-se em recitar Nam-myoho-rengue-kyo e ensinar os outros a fazerem o mesmo. O escrito que Nitiren Daishonin explica a visão fundamental da vida e da morte é o que começaremos a estudar: “A herança da suprema Lei da vida”.
A vida e a morte como funções da Lei Mística
Nesse escrito, Daishonin esclarece que a Lei Mística (myoho, em japonês) compreende duas fases: a vida e a morte. Ele nos diz: “Myo representa a morte, e ho, a vida”. (END, v. 3,p. 173.) Declara também que todas as formas de vida — ou seja, todos os fenômenos — estão sujeitas a essas duas fases e esclarece que todas experimentam a vida e a morte, que são funções da Lei Mística. Daishonin explica que o nascimento e a morte são partes inerentes da vida. Dessa forma, ele procura nos impedir de cair no erro de temer a vida e a morte ou no equívoco de desenvolver forte apego à vida ou à morte.
A Lei Mística é a Lei eterna e infinita do Universo. Essa Lei eterna abarca as duas fases, da vida e da morte. Em outras palavras, vida e morte representam o ritmo da Lei eterna, que se expressa no viver e no morrer de incontáveis seres ou entidades, no surgimento e na extinção de todos os fenômenos, nos muitos tipos de causas e efeitos em múltiplas dimensões e, ainda, na harmonia e no dinamismo do cosmos como um todo.
Essa visão da vida e da morte como funções da Lei Mística constitui uma questão de importância primordial para nós, pois a felicidade genuína só é possível quando vivemos de acordo com o grandioso ritmo da vida e da morte.
No budismo, o mestre e o discípulo transmitem a herança da iluminação
Até o momento, apresentei uma síntese do significado da “questão de importância fundamental referente à vida e à morte”, um dos temas essenciais de “A herança da suprema Lei da vida”. Prosseguindo, gostaria de reafirmar o significado de “herança”, outro grande tema desse escrito, por meio de um panorama dos pontos fundamentais da obra.
(1) A suprema Lei da vida e da morte que é transmitida pelo Buda para todos os seres vivos é o Myoho-rengue-kyo. Os cinco caracteres do Myoho-rengue-kyo foram transmitidos por Sakyamuni e Muitos Tesouros,10 os dois budas da Torre de Tesouro, para o Bodhisattva Práticas Superiores,11 dando continuidade a uma herança ininterrupta desde o infinito passado. (END, v. 3, p. 173.)
(2) Myo representa a morte, e ho, a vida. Os seres vivos que passam por essas duas fases da vida e da morte são entidades dos Dez Estados, ou entidades do Myoho-rengue-kyo. (END, v. 3, p. 173.)
(3) A vida e a morte são simplesmente as duas funções do Myoho-rengue-kyo. (END, v. 3, p. 174.)
(4) Sakyamuni e Muitos Tesouros, os dois budas, também são as duas fases da vida e da morte. (END, v. 3, p. 174.)
(5) O Buda Sakyamuni, que alcançou a iluminação há incontáveis kalpa,12 o Sutra de Lótus, que conduz todas as pessoas ao estado de Buda, e os mortais comuns não diferem, de forma alguma, uns dos outros. Recitar o Myoho-rengue-kyo com essa compreensão é o mesmo que herdar a suprema Lei da vida e da morte. (END, v. 3, p. 174-175.)
(6) Para a pessoa que reúne toda sua fé e recita o Nam-myoho-rengue-kyo com a profunda compreensão de que este é o último momento de sua vida, o sutra proclama: “Quando a vida dessas pessoas chegar ao fim, elas serão recebidas por milhares de budas de braços abertos, que as livrarão do medo e evitarão que caiam nos maus caminhos da existência”. (END, v. 3, p. 175.)
(7) A herança do Sutra de Lótus existe na vida daqueles que jamais abandonam esse sutra em momento algum de suas existências, seja no passado, seja no presente ou futuro. (END, v. 3, p. 176.)
Daishonin inicia dizendo que “A suprema Lei da vida e da morte” é Myoho-rengue-kyo, e que Myoho-rengue-kyo é a herança que o Bodhisattva Práticas Superiores [o líder dos Bodhisattvas da Terra] recebeu do Buda Sakyamuni e do Buda Muitos Tesouros. [Ver item 1.]
Como mencionei, é somente por meio da atuação abnegada que o Myoho-rengue-kyo pode ser transmitido como Lei suprema da vida e da morte. Daishonin cita o nome do Bodhisattva Práticas Superiores como mestre ou mentor, que assume o compromisso de viver e atuar com essa postura. Explica que “a herança da suprema Lei da vida e da morte” somente pode fluir na fé embasada na unicidade de mestre e discípulo.
Em seguida, ele esclarece que a Lei Mística abarca as duas fases da vida e da morte, e que a vida e a morte de todos os seres ou entidades, o surgimento e a extinção de todos os fenômenos, são a vida e a morte como funções da Lei Mística. Os seres vivos dos Dez Mundos e os dois budas — Sakyamuni e Muitos Tesouros — representam a vida e a morte como funções da Lei Mística. [Ver itens 2, 3 e 4.]
Com base nessas frases precedentes, Daishonin então declara que não há absolutamente nenhuma distinção entre “o Buda Sakyamuni, que atingiu a iluminação há incontáveis kalpa”, “o Sutra de Lótus, que conduz todas as pessoas ao estado de Buda” e “os mortais comuns” (END, v. 3, p. 174). Todos são entidades de Myoho-rengue-kyo (a Lei Mística). Ele explica que somente por meio da fé e da recitação de Myoho-rengue-kyo, com forte convicção, podemos “herdar a suprema Lei da vida e da morte”. É nessa fé — recitar Myoho-rengue-kyo com a convicção de que o Buda e a Lei para atingir a iluminação são
Myoho-rengue-kyo, e que Myoho-rengue-kyo não existe em nenhum outro lugar senão em nossa própria vida — que reside o significado essencial de aceitar e manter a Lei Mística, a prática fundamental do Budismo de Nitiren Daishonin. [Ver item 5.]
Daishonin então explica, em termos de vida e morte, que a essência da fé na Lei Mística é viver com a atitude de que este “é o último momento de sua vida”. [Ver item 6.] Isso significa manter uma fé genuína com firmeza e constância em todos os momentos da vida, de tal modo que, se tivéssemos de enfrentar a morte neste exato momento, não teríamos nada do que nos arrepender, e poderíamos transcender serenamente o sofrimento da morte. Quando praticamos com essa fé genuína até o último momento de nossa vida nesta existência, podemos “aceitar e manter” o Sutra de Lótus pelo passado, presente e futuro, ou seja, pelas três existências. Por isso, afirma Daishonin, “A herança do Sutra de Lótus existe na vida” daqueles que jamais o abandonam em momento algum de suas existências, seja no passado, seja no presente ou futuro. [Ver item 7.]
Quando praticamos com a atitude correta até o último momento de nossa existência, “a herança suprema da Lei da vida e da morte” fluirá em nossa vida de forma incessante, atravessando o ciclo de nascimento e morte, ao longo do passado, presente e futuro. Isso representa o epítome da vida e da morte como funções da Lei Mística.
Por essa razão, é fundamental mantermos a fé por toda a nossa existência neste mundo. Manter uma fé assídua e correta até o último instante é, por si só, atingir o estado de Buda nesta existência. Nesse momento, a morte não será o cessar da vida, mas a conclusão de uma existência e o início de uma nova, muito mais profunda e significativa. A pessoa que falece dessa forma não experimenta medo, angústia ou inquietação. Ao contrário, deleita-se com alegria infinita por transcender os sofrimentos da vida e da morte.
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