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Romper barreiras — Um diálogo sobre música, budismo e felicidade

Capítulo 9, parte 2

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03/08/2020

Romper barreiras — Um diálogo sobre música, budismo e felicidade

Raízes profundas

Shorter: Ikeda sensei, parabéns pelo título honorário de doutor em direito da prestigiada Universidade da Zâmbia [em 25 de setembro de 2011]. Essa condecoração é a maior honra e a expressão da gratidão pelas contribuições do senhor pela paz e pelos direitos humanos — uma contribuição que transcende fronteiras nacionais.

Hancock: Essa é realmente uma notícia fantástica. Para nós, o fato de esse título vir de uma universidade da África é motivo para comemorar em dobro. Também soube que Kenneth D. Kaunda, primeiro presidente da República da Zâmbia, e primeiro reitor da Universidade da Zâmbia, enviou uma calorosa mensagem de congratulações na ocasião.

Ikeda: Sim, foi uma grande honra e é unicamente o resultado das contribuições que os integrantes da SGI-Zâmbia fizeram à sociedade enquanto cidadãos e membros da comunidade. Lembro-me do já falecido Darlington Kalabula, professor da Universidade da Zâmbia e diretor-geral da SGI-Zâmbia. Sua esposa, Hatsuko, e os jovens sucessores da SGI-Zâmbia estão dando continuidade de forma jovial ao espírito do Dr. Kalabula em suas vibrantes atividades.

Aceitei o título honorário com o sentimento de recebê-lo junto com todos os membros da SGI em Zâmbia e em outras quarenta nações africanas. Quando a comitiva da Universidade da Zâmbia visitou o Japão para conferir o título, o Coral Justiça (Justice Chorus), composto por integrantes do ensino médio, recebeu-a com a música zambiana Vamos Juntos (Tiyende Pamodzi). A comitiva ficou encantada com o gesto. Ao estudar outra cultura com respeito e expressar uma afinidade vívida e vigorosa por meio de sua performance, nosso coral criou um ritmo de esperança por um futuro melhor.

Hancock: Esse é mais um exemplo maravilhoso do intercâmbio cultural que o senhor iniciou.

É impossível descrever a África em poucas palavras. Indícios disso estão no fato de existirem mais de 8 mil dialetos africanos e nas enormes diferenças entre o norte, o sul, o oeste, o leste e as regiões centrais do continente. A diversidade é uma característica definidora da África e é evidente nas ricas tradições culturais.

Ikeda: Seus mais de 30 milhões de quilômetros quadrados fazem da África um território três vezes maior que o dos Estados Unidos. Ali existem montanhas, como o Monte Kilimanjaro, sempre cobertas de neve, bem como desertos, florestas tropicais e savanas — uma incrível variedade de climas. Há também grandes metrópoles, como Nairóbi e Johanesburgo, com edifícios que se estendem aos céus. A África é o lar de diversas culturas e de músicas criadas por meio da interação de seus povos e da influência do cristianismo e do islamismo.

Shorter: A África é definida por sua diversidade. É impressionante e memorável o fato de que, em 1991, embaixadores de 26 países africanos no Japão concordaram que o senhor, Ikeda sensei, deveria receber o Certificado de Reconhecimento por promover a educação, a cultura e o humanismo. Além disso, em 2010, a Associação de Chefes de Missão Africanos em Tóquio [Association of African Heads of Mission in Tokyo] decidiu conferir ao senhor o Prêmio da Boa Vontade Africano [African Goodwill Award]. Isso diz muito sobre a excelência da filosofia e das atividades em prol da paz que o senhor promove.

Hancock: A África é o continente no qual a humanidade nasceu e a terra à qual toda a humanidade pertence. Uma das experiências mais emocionantes da primeira viagem que fiz ao Quênia foi ir a um safari. Partimos de Nairóbi para uma área de conservação natural e, depois de uma hora de trajeto, vimos uma família de girafas atravessando a estrada. Já havia visto girafas antes, em zoológicos, mas essa visão me deixou às lágrimas. Quando percebi que estava chorando, eu me perguntei o porquê. Por que estava tão comovido? Vê-las me fez consciente de que eu me encontrava, pela primeira vez, na terra natal delas, o Quênia.

Depois disso, comecei a perceber que minhas reações por estar no Quênia eram relacionadas a algo muito mais profundo, mais primordial do que apenas o entusiasmo de explorar a terra natal dos meus ancestrais. Comentei isso com um dos meus amigos japoneses, e ele me disse que teve a mesma experiência. Foi quando me conscientizei de que minha comoção durante a viagem ao Quênia se deveu ao fato de eu ter me conectado com as origens, com as raízes de toda a humanidade.

Shorter: Entendo esse sentimento.

Ikeda: Certa vez perguntei a um líder da SGI-África por que a música africana transcende fronteiras e toca o coração de pessoas ao redor do mundo. Ele respondeu orgulhosamente e sem hesitar que isso ocorre porque na África se encontram as raízes de toda a espécie humana. “Quanto mais profundas as raízes, mais exuberantes são os ramos”, afirma a famosa passagem dos escritos de Nichiren Daishonin (CEND, v. II, p. 206). As profundas raízes da civilização que estão fincadas na África são um tesouro global.

Viemos da mesma terra, de um solo comum. Desse solo da vida flui uma corrente infindável de criatividade, de sabedoria para o crescimento e para o desenvolvimento. Neste mundo deturpado e corrupto, os bodisatvas da terra manifestam energia vital ilimitada e eterna em prol da felicidade das pessoas.

Nichiren Daishonin questionou: “Quando o bodisatva Práticas Superiores [líder dos bodisatvas da terra] emergiu da terra, não o fez bailando?” (CEND, v. II, p. 387). A partir da África, em uma onda crescente, bailam os jovens que abraçam o grandioso ensinamento, preenchidos pela condição de vida de bodisatva da terra que brilha como o sol da manhã.

Hancock: A África tem o potencial de conduzir a humanidade para fora da escuridão. Esse país nos influenciou de muitas formas. Por exemplo, não há dúvidas de que [Pablo] Picasso foi influenciado pela arte africana. Porém, mesmo que ele tenha sido inspirado por temas e técnicas de artistas africanos, o público em geral não tem consciência disso.

De forma similar, muitas ideias que acreditamos terem sido criadas ou descobertas no Ocidente, na verdade se originaram na África. Não deveríamos admitir que os ocidentais são como estudantes, e os africanos, seus professores? Acredito que vamos continuar a descobrir diversas contribuições da África que moldarão o futuro da humanidade de maneira benéfica e construtiva.

Ikeda: A questão que o senhor levantou sobre quem é o professor e quem é o estudante foi direto ao ponto. Mariano Mores, grande mestre argentino de tango que atuou em conjunto com a SGI, disse que a palavra “tango” vem do ritmo de dança acompanhado por tambores africanos.1 Tais investigações sobre a origem de manifestações culturais certamente aprofundam e revigoram nossa gratidão.

O Japão, por sua parte, possui uma grande dívida cultural com a Coreia e com a China. Daishonin escreveu: “Nosso país, Japão, é discípulo desses dois países” (CEND, v. II, p. 766). Essa é a razão pela qual constantemente digo aos nossos jovens que não se esqueçam da nossa dívida cultural e que lutem para saldá-la. Essa não é apenas a coisa certa a se fazer, mas é também o segredo para o sucesso e a prosperidade mútuos.

Vidas conectadas

Shorter: O avanço de uma cultura em particular é sempre o resultado de influências benéficas de outras culturas. Ter consciência da própria dívida e se sentir grato por isso são o combustível para o desenvolvimento da sabedoria. É vergonhoso quando alguém conquista algo e não sente gratidão pelos outros, agindo como se a conquista fosse unicamente dele.

Ikeda: Não existimos isoladamente, tampouco as nações. Elas necessitam do apoio de muitos outros países. O respeito mútuo e a compreensão são fontes de crescimento para nós e para os demais. Temer ou rejeitar os que são de etnias ou culturas diferentes é prejudicial a todos.

Ao mesmo tempo, não podemos nos desconectar do passado. Somos nutridos pelas dádivas das conquistas e culturas dos nossos antecessores.

Nossa época requer uma sabedoria que reconhece a interconexão da vida. A filosofia budista da origem dependente promove o desenvolvimento de tal sabedoria.

Hancock: Quando cofundei e fui o diretor musical do Tokyo Jazz, um grande festival internacional de jazz, e quando criei The Imagine Project [Projeto Imagine], fascinava-me trabalhar com pessoas de muitos contextos culturais diferentes. Acredito que minha principal motivação para realizar esses projetos, além da simples curiosidade, foi a chance de realizar trabalhos em escala internacional. Essa colaboração global tem um apelo poderosamente magnético para o espírito humano.

Toda vez que faço uma apresentação, sempre converso com quem me encontro no local. Digo-lhes: “Meu desejo é mostrar o que pode ser conquistado ao se respeitar outras culturas e ao abrir nossa própria cultura para outras influências. Esse é o caminho para ir além do que cada cultura poderia fazer sozinha”. Nós só podemos conquistar mais se trabalharmos juntos. Podemos ter sucesso ao nos abrirmos a novas ideias e pontos de vista.

Shorter: Acredito que o jazz seja um meio de despertar a criatividade. Há certo tempo, minha banda e eu nos encontramos com alguns músicos clássicos que nos viram tocar e nos perguntaram sobre trabalhos colaborativos.

Certa vez, depois de um concerto, um pianista clássico veio ao nosso camarim. Ele disse a um membro do nosso grupo: “Nossa! Sua música é tão atual! Não é como a ‘nova música’ que tenta ser moderna e inteligente. Posso identificar a diferença entre algo genuinamente humano e algo que foi manufaturado, ainda que sua [música] seja moderna e muito inteligente também”.

Temos o desafio de nos preparar para lidar com o inesperado durante uma apresentação. Essa é a razão pela qual não realizamos um ensaio, tradicionalmente falando. O jazz desafia nossas habilidades de viver o momento e o estudo do Budismo Nichiren é a maior preparação para lidar corajosamente com o desconhecido.

Esse integrante da nossa banda disse ao pianista: “Não queremos fazer uma música que seja planejada e inteligente. Queremos um som que tenha um senso de humanidade e que desperte as pessoas para a plenitude da vida”.

Ikeda: A coragem para criar algo novo e o espírito jovial da aventura são qualidades do jazz que encantam pessoas ao redor do mundo.

Hancock: Fazer parte de uma equipe que cria unidade e coesão me traz grande satisfação e prazer. Atualmente, muitas situações causam distanciamento e levam a conflitos e assassinatos em massa. Hoje, mais que nunca, é importante que unamos as pessoas e, como dissemos, a música é a única forma de fazer isso.

Ikeda: Tocar e ouvir música juntos é uma forma de cultivar amizades alegres e vigorosas, e cria o impulso em direção à paz. Músicos de jazz frequentemente olham uns para os outros enquanto estão tocando, trocam sorrisos admirados e parecem desfrutar genuinamente a apresentação em conjunto. Senti isso em particular durante as apresentações dos senhores nos eventos da Soka Gakkai.

Shorter: O mais importante para uma apresentação é ter uma presença otimista e entusiástica, e irradiar sorrisos e luz. O artista ou a artista devem ser capazes de transformar um ambiente desanimado e pesado em um ambiente radiante e claro — uma mudança do peso para o dinamismo.

Isso me faz lembrar quando Herbie e eu nos apresentamos para um grande grupo de chefes de Estado.

Hancock: Era uma reunião internacional de presidentes e diplomatas, e fomos convidados para realizar uma apresentação no último dia da conferência. Momentos antes, Wayne, alguns outros músicos e eu recitamos daimoku juntos. Quando subimos ao palco e começamos a tocar, tudo aconteceu da maneira mais bela. Tudo fez sentido.

Lembro-me de olhar para o público. Vi diferente chefes de Estado fitando uns aos outros, parecendo indiferentes. Mas, quando começamos a tocar, vi pouco a pouco as pessoas se aproximarem. Em vez de braços cruzados, eles se abriram e os sorrisos também. Aquelas pessoas estavam aproveitando o momento e a jornada ao nosso lado. Fizemos uma apresentação incrível e, quando terminamos, todos nos ovacionaram de pé.

Ikeda: Deve ter sido muito inspirador. A emoção sincera das improvisações brilhantes dos senhores naturalmente fez o público esquecer os obstáculos e as diferenças que o separavam e os transportou para um lugar de humanidade compartilhada. Isso é de fato o poder da música para criar a paz.

Em uma visita a Los Angeles (em 1993), compus o poema O Sol de Jiyu sobre uma Nova Terra, enaltecendo a diversidade da América:

Enquanto cada grupo busca

suas raízes e origens separadamente,

a sociedade se fraciona em mil fendas.

Enquanto vizinhos se distanciam

de seus vizinhos,

continuem sua jornada convicta

em busca das raízes verdadeiras

nas profundezas de sua vida.

Busquem as raízes primordiais da

humanidade.

Então, certamente,

o imponente e vasto estado de jiyu

[bodisatva da terra]

vai se descortinar nas profundezas

de sua vida.

Aqui é o lar, a morada

na qual a humanidade encontra

sua existência original —

além de todas as fronteiras,

além de todas as diferenças de

gênero e de etnia.

Este é um mundo que mostra a prova real

da nossa humanidade.

Se uma pessoa alcança essas

raízes fundamentais,

todos se tornam amigos e companheiros.

Perceber isso é “emergir da terra”.2

O movimento Soka pela cultura é a expansão da rede enraizada no solo fundamental da raça humana, transcendendo todas as diferenças.

Notas:

1. A afirmação de Mariano Mores consta na edição de 19 de julho de 1990 do jornal Seikyo Shimbun.

2. IKEDA, Daisaku. Journey of Life: Selected Poems of Daisaku Ikeda [Jornada da Vida: Poemas Selecionados de Daisaku Ikeda]. Londres: I.B. Tauris, 2014. p. 241.

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