
Conteúdo
Diálogo Sobre a Filosofia Budista
Por que os obstáculos e as maldades tentam impedir a prática budista
Recordações de Meus Encontros
TC
Nelson Mandela, ex-presidente da África do Sul
01/09/2004
Nosso primeiro encontro ocorreu em 1990, ano em que ele foi libertado da prisão; o segundo, em 1995, quando foi eleito presidente da República da África do Sul. O “grande criminoso”, que havia suportado mais de 27 anos de encarceramentoo por alta traição, era agora o presidente de sua nação — um sinal de que a justiça, ela própria também encarcerada por um longo tempo, estava começando a reinar uma vez mais em sua terra natal.
Um modelo para a juventude
Foi sob um brilhante céu azul de outono que nos encontramos pela primeira vez, quando eu o recepcionei no pátio em frente ao edifício do Seikyo Shimbun, em outubro de 1990, junto com quinhentos membros da Divisão dos Jovens. Meu desejo era incentivar aqueles jovens a aprenderem com o presidente Mandela e o povo africano. “Olhem para este homem!” — dizia eu em meu coração. “Olhem para este ser humano invencível que renunciou a todo o conforto e tranqüilidade para travar uma luta de dez mil dias na prisão!” Desejava que eles também pudessem viver como aliados daqueles que foram mais arduamente oprimidos, que caminhassem ao lado daqueles mais discriminados e se juntassem àqueles que mais sofriam — pois não é esse o espírito de Nitiren Daishonin, que declarou ser “simplesmente o filho de um plebeu” (The Writings of Nichiren Daishonin [WND], pág. 1006) e o “filho de uma família chandala” (WND, pág. 202)?
Eu queria clamar a eles para que não se tornassem pessoas que abandonam covardemente suas convicções diante da menor dificuldade. Penso que, mesmo que se vissem obrigadas a passar a vida inteira na prisão, fossem campeãs invencíveis ou que ao encerrar a vida, não tivessem o menor arrependimento.
Além dessa mensagem para os jovens, queria expressar minha mais sincera gratidão ao presidente Mandela. Sua luta para anunciar o fim do apartheid, a política nacional de discriminação racial da África do Sul — sua luta de direitos humanos para todos — é, na verdade, a luta de toda a raça humana. É uma batalha pela própria dignidade da existência humana. E, por essa razão, é uma luta de todos nós, independentemente de nossa nacionalidade, por sermos parte da mesma família humana. É como se o presidente Mandela e seus companheiros heróis da liberdade tivessem assumido essa luta como representantes de toda a raça humana.
Esperança na prisão
A cela do presidente Mandela tinha apenas três passos de parede a parede. Por ter uma estatura alta, ele não podia dormir sem dobrar as pernas. Mandela viveu nessa cela durante 18 anos. “Uma hora era como um ano”,1 lembra ele. Foi na prisão que soube da morte de sua mãe. Foi na prisão quando soube que seu filho havia morrido “acidentalmente” em circunstâncias muito suspeitas. Foi nessa mesma cela que soube das perseguições à sua esposa. E foi também no cárcere que ele soube que sua casa havia sido incendiada e que seus companheiros do movimento pelos direitos civis dos negros estavam sendo mortos um após outro. Não havia nada que ele podia fazer, a não ser resistir.
O governo começou a prender impiedosamente e a matar até mesmo crianças. Aqueles que ousavam resistir ou tentavam se defender eram declarados terroristas e tratados severamente.
Mesmo assim, o presidente Mandela era um homem que não desistia, pois tinha absoluta convicção em suas crenças. Ele sabia que nenhuma força que se opusesse à marcha da história e à essência da humanidade poderia triunfar no final. Embora o governo tentasse isolar a ele e a seus seguidores, ele sabia que o mundo não permitiria.
Sustentando esses ideais elevados, ele pôde sustentar a esperança. Quando os líderes perdem seus ideais, não conseguem fazer outra coisa senão reagir passivamente aos acontecimentos. Como resultado, as pessoas vão perdendo a esperança de que ocorram mudanças sociais.
Em 1978, dezesseis anos depois de sua prisão, finalmente foi concedido ao presidente Mandela o direito de encontrar-se com sua filha Zeni. Ela havia se casado com um príncipe da Suazilândia, conquistando assim o privilégio diplomático de um encontro pessoal, sem muros nem barreiras de vidro separando pai e filha.
Zeni levara sua filha recém-nascida junto com ela. Deixou o bebê com seu marido e correu para os braços de seu pai, sentindo uma descarga elétrica de emoção quando este a abraçou. A última vez que isso havia acontecido, Zeni era tão pequena quanto sua filha.
O presidente Mandela segurou sua neta durante toda a visita. Ele escreveu: “Segurar um bebê recém-nascido, tão vulnerável e suave em minhas mãos ásperas, que por muito tempo seguraram apenas picaretas e pás, foi uma alegria indescritível. Não creio que nenhum homem tenha sentido maior felicidade por segurar um bebê do que eu senti naquele dia.”2
Zeni pediu a seu pai que escolhesse um nome para o bebê. Ele a chamou Zaziwe, que significa “esperança”. A esperança havia sido sua companheira constante durante muitos anos. A esperança havia sido sua amiga que permaneceu fielmente ao seu lado na prisão. Quando olhou sua neta, escreveu ele posteriormente, pensou no futuro, quando ela já estaria crescida e o apartheid seria uma lembrança distante. Ele pensou na chegada de uma nova era, na geração de sua neta desfrutando o sol da liberdade, caminhando orgulhosa e destemidamente pelas ruas. Ele pensou em uma era em que seu país não fosse governado por brancos ou negros, mas que todas as pessoas pudessem viver juntas em harmonia e igualdade. Foi pensando em tudo isso que ele escolheu o nome “Esperança” para sua neta.3
Uma canção inesquecível
Meu segundo encontro com o presidente Mandela ocorreu no Casa de Hóspedes do Estado, em Tóquio (em julho de 1995). Ele disse sorrindo: “Lembro-me claramente de nosso encontro há cinco anos.” Mencionou o céu azul de outono, a calorosa recepção que recebeu pelos muitos jovens que estavam lá. Disse que esse calor humano enchera de alegria e que ele jamais se esqueceria dos estudantes da Universidade Soka cantando para ele.
Os membros da Associação para a Amizade Pan-Africana da Universidade Soka recepcionaram Mandela naquele dia com a popular canção sul-africana “Rolihlahla Mandela”:
Rolihlahla Mandela!
A liberdade está em suas mãos.
Mostre-nos o caminho para a liberdade
Nesta terra da África.
Ó, Mandela, Mandela, Mandela,
Mandela diz: “Liberdade agora!”
Mostre-nos o caminho para a liberdade
Nesta terra da África.
O presidente Mandela ficou muito comovido com essa recepção. O que ele pensava enquanto observava os olhos radiantes dos estudantes? Seria nos jovens de sua pátria, que haviam sido privados da oportunidade de receber uma educação superior? Esse defensor da liberdade havia suportado tudo em nome dos jovens de sua terra.
Lutando contra a educação discriminatória
“A Universidade do Norte”, disse meu filho mais velho, Hiromasa, quando retornou da África do Sul, “é realmente remota. A África do Sul não parece ser muito distante do Japão, mas quando cheguei, tive de viajar muito até chegar à Universidade. Isso me permitiu experimentar um pouco da realidade do apartheid”.
Fui homenageado com um título de Doutor Honorário em Educação pela Universidade do Norte, da qual Mandela foi chanceler de 1992 a 1997, e enviei meu filho para participar da cerimônia de concessão em meu lugar. Isso ocorreu em setembro de 1995, dois meses após meu encontro com o presidente Mandela em Tóquio.
Como sugere seu nome, a universidade localiza-se no norte do país, 345 quilômetros de Johanesburgo. Hiromasa relatou que viajou até lá num pequeno avião, mas retornou de carro. Ele me disse: “A terra vermelha da África do Sul parece não ter fim. A própria universidade está no meio do nada. Disseram-me que era muito raro um japonês ir até lá.”
A Universidade do Norte localiza-se em Turfloop, nos arredores de Pietersburgo. Foi fundada como uma das cinco instituições especiais para o estudante negro africano. Foi um dos produtos da política educacional discriminatória do governo, conhecida como “Educação Bantu”. O presidente Mandela escreveu que o objetivo dessa lei era ensinar às crianças que os africanos eram por natureza inferiores aos europeus.
A política governamental da África do Sul defendia que algumas raças eram superiores a outras, o mesmo argumento usado pelos nazistas e pela educação imposta pelo Japão em suas colônias antes de sua derrota na Segunda Guerra Mundial. Todas essas ideologias têm algo em comum: o desejo de escravizar as pessoas nas profundezas de seu ser.
A promulgação da “Educação Bantu” pelo governo sul-africano foi descrita como uma “declaração insensível que feriu a moral africana em sua essência”.4 A biógrafa do presidente Mandela narra o seguinte sobre os pensamentos do líder: “Nelson se perguntava o que era mais prejudicial, a destruição dos lares das pessoas ou a destruição de sua mente perpetrada por meio desse sinistro programa educacional.”5
Os estudantes resistiram. Embora fossem forçados a viver em guetos, a verdade não podia ser escondida. Com o passar dos anos, a Universidade do Norte foi se transformando em um centro luta contra o apartheid. Os estudantes boicotaram as aulas, realizaram manifestações, engajaram-se em confrontos com as forças de segurança e viram a universidade ser fechada diversas vezes. Quando suas demonstrações se estendiam um metro fora do campus, a polícia atacava e prendia os estudantes.
Morrer por um ideal que haverá de viver
Fiquei comovido pelo fato de o título de doutor honorário conferido a mim ter sido o primeiro a ser concedido pela Universidade do Norte desde o nascimento da nova República da África do Sul (em 1994). A universidade deixou de ser uma remota ilha de ensino no meio do nada para transformar-se em um centro de desenvolvimento da região. A cerimônia, que teve lugar no auditório da instituição, foi realizada em conjunto com a cerimônia de graduação. O chanceler Mandela gentilmente enviou-me uma mensagem de congratulações que foi lida na ocasião.
Tempos atrás, outra cerimônia de graduação da Universidade do Norte ficou marcada na história do país. Em 29 de abril de 1972, um dos estudantes oradores chocou o público por criticar abertamente a política educacional discriminatória do governo e as autoridades universitárias que a colocavam em prática: “Aos que apóiam sinceramente a política do apartheid, eu digo: Vocês acham que a minoria branca pode ansiar cometer um suicídio político criando numerosos estados que podem se tornar hostis no futuro?”6
Onkgopotse Ramothibi Tiro, o estudante que fez esses comentários, era um jovem pobre, assim como a maioria de seus companheiros. Ele havia poupado o dinheiro para pagar a faculdade trabalhando em minas de manganês, lavando pratos e fazendo trabalhos temporários. Mas a educação pela qual havia trabalhado tanto para obter o estava ensinando a ser apenas uma outra peça na engrenagem que apoiava o sistema de discriminação racial da nação: Ele declarou:
“Nós, graduados negros, em virtude de nossa idade e nível acadêmico, devemos assumir uma responsabilidade ainda maior visando à libertação de nosso povo. Nossos assim chamados líderes se tornaram peças da mesma máquina que está destruindo nossa nação. Temos de nos voltar a eles para educá-los. A época está mudando e nós precisamos mudar com ela. (...) De que lhes servirá a educação se não puderem ajudar seu país na hora em que ele necessita? Se sua educação não estiver relacionada a todo o continente africano, não terá significado...
“Dia virá quando todos seremos livres para respirar o ar da liberdade, que espera por nós. E quando esse dia chegar, nenhum homem, por mais tanques que possua, poderá mudar o curso dos eventos.”7
Por falar dessa forma, Tiro foi expulso da universidade, mas continuou como um líder ativo do Movimento Estudantil da África do Sul (SASM, na sigla em inglês). No dia 4 de fevereiro de 1974, quando vivia no exílio na vizinha Botsuana, ele abriu um pacote que estava na caixa de correios. O pacote explodiu e o matou. Ele tinha 28 anos.
Durante sua breve existência, nunca deixou de pensar no que deveria fazer para os pobres e excluídos. Seu lema era: “Prefiro morrer por um ideal que haverá de viver e não viver por uma idéia que irá morrer.”
O valor de uma universidade não é medido por suas facilidades ou edifícios. Tampouco pelo fato de ter acadêmicos famosos entre seus professores. Na verdade, houve muitos acadêmicos no mundo dispostos a oferecer suporte “científico” ao apartheid. O valor de uma universidade é determinado pela forma como o ensino superior que oferece é colocado em prática.
No discurso que proferiu em sua posse como chanceler da Universidade do Norte, em 1992, o presidente Mandela elogiou aqueles corajosos estudantes que haviam sido presos ou que tiveram a coragem de lutar contra o apartheid mesmo quando forçados ao exílio. No topo da lista desses jovens heróis, ele mencionou Tiro. O presidente Mandela recusava-se a deixar aqueles que haviam dado a própria vida na escuridão, antes de chegar a ver o raiar do amanhecer da liberdade que estava por vir.
Meus amigos estão em meu coração
As primeiras eleições livres foram realizadas na África do Sul em abril de 1994. Era o nascimento de novos tempos para a nação. Um longo caminho havia sido percorrido até se conquistar os direitos humanos fundamentais para todas as pessoas, independentemente da raça ou da etnia, para que elas tivessem o direito de votar. Enquanto o presidente Mandela caminhava para a urna de votação, o rosto de seus amigos que haviam falecido na longa jornada surgiam em sua mente, um após outro. Todos aqueles homens, mulheres e crianças, pensava ele, haviam dado a vida para que ele e seus companheiros sul-africanos pudessem estar ali naquele dia. Ele jamais os esqueceria. Eles estavam vivos em seu coração — vivos e chamando por ele, encorajando-o e clamando para que ele continuasse lutando e avançando para a vitória da verdade e da justiça: “Eu não fui para o posto eleitoral sozinho naquele 27 de abril; eu estava votando junto com todos eles”,8 escreveu o presidente Mandela.
Se todos os líderes partilhassem esse espírito, não haveria corrupção.
Os opressores são também prisioneiros
As filosofias mais profundas nascem entre aqueles que mais são oprimidos. O presidente Mandela foi preso, mas ao mesmo tempo ele sabia que todos os sul-africanos estavam vivendo na prisão gigante do apartheid. Eis por que, quando seus carcereiros ofereceram-lhe a liberdade e troca de abandonar suas crenças, ele recusou. Naturalmente, ele queria sua liberdade. Mas se seus companheiros sul-africanos não estivessem livres, ele também não poderia sentia-se livre. “A liberdade é indivisível; as correntes que prendiam cada sul-africano eram as mesmas que nos atavam a todos. As correntes que prendiam meu povo eram também as minhas”,9 escreveu.
Quanto maior a pessoa, mais amor tem no coração. O amor do presidente Mandela não era apenas pelos negros africanos. Ele se recorda: “Durante aqueles longos e solitários anos, meu desejo de obter a liberdade para meu povo transformou-se no desejo de libertar todos os povos, brancos ou negros. Sabia melhor do que ninguém que era necessário libertar tanto o opressor como o oprimido. Um homem que tira a liberdade de outro é um prisioneiro do ódio, ele está preso atrás das barras do preconceito da mente estreita... O opressor quanto o oprimido são privados de sua humanidade.”10
Um homem privado de sua liberdade por quase metade de sua vida adulta nos ensina o profundo significado da liberdade. A essência sagrada da liberdade está na convicção inabalável. Somente aqueles que vivem fiéis às suas convicções, sem serem escravizados pelo seu ambiente, são realmente livres. Como disse o presidente Mandela: “Ser livre não é simplesmente desprender-se das correntes, mas viver de forma que respeite e promova a liberdade dos demais.”11
Em ambos os nossos encontros discutimos a importância da educação na promoção desse modo de vida. “De uma perspectiva de longo prazo, tenho a dizer que a educação é a causa básica do crescimento de uma nação. Essa é minha convicção imutável”, declarei. Os jovens são a chave, afirmei. Tudo depende de desenvolvermos jovens de forte convicção e autêntica sabedoria. O presidente Mandela sorriu em concordância e disse: “As medalhas um dia são destruídas. Os prêmios podem ser queimados, perdidos ou roubados. Entretanto, as palavras de sabedoria são imperecíveis.” Elas são o supremo tesouro, afirmou Mandela.
E é por isso que eu digo repetidamente aos jovens: “Olhem para este homem! Sigam o exemplo vitorioso desse campeão que demonstrou com sua própria vida a filosofia imortal do amor por toda a humanidade!”
Nascido em julho de 1918, o ex-presidente Nelson Mandela está hoje com 86 anos. Ele esteve preso de 1962 a 1990 por ser líder da resistência ao apartheid. Em 1992, foi nomeado chanceler da Universidade do Norte e foi reeleito presidente da África do Sul dois anos mais tarde, em 1994. Sua popularidade nesse país mantém-se elevada mesmo após deixar a vida pública em 1999. Ainda hoje, é uma figura respeitada mundialmente por seus esforços de mediação em conflitos internacionais, por sua obra de assistência à infância, por suas contribuições para a luta contra a Aids e por suas declarações em defesa dos direitos humanos em todo o mundo.
Compartilhar nas