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Romper barreiras — Um diálogo sobre música, budismo e felicidade

Capítulo 4, parte final

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14/09/2019

Romper barreiras — Um diálogo sobre música, budismo e felicidade

O impossível é possível

Compartilhe um profundo compromisso

Ikeda: Sr. Hancock, com quem estudou jazz antes de se encontrar com Miles Davis?

Hancock: Que bom que perguntou. Mesmo tendo frequentado a Faculdade Grinnell, não estudei jazz lá. Naquela época, havia apenas uma instituição nos Estados Unidos que ensinava esse estilo musical. Muitos jazzistas estudaram por conta. No entanto, em 1960, Donald Byrd me descobriu e me contratou para tocar em sua banda. Ele me orientou e realmente cuidou de mim. Uma das músicas que tocamos quando estávamos juntos era chamada Cherokee. Era rápida demais, e eu não sabia improvisar no mesmo ritmo. Não conseguia.

Depois da primeira noite, Donald me disse algo que havia aprendido com outro pianista: “A razão pela qual você não consegue tocar rápido é porque nunca se ouviu tocando depressa”. O ponto era que, por eu nunca ter me ouvido tocar dessa forma, pensava que não conseguiria, e era isso que eu precisava mudar. O importante não era aprender a velocidade, mas me ouvir tocando velozmente. Então, pus em prática o que ele me ensinou, e na noite seguinte, quando eles tocaram Cherokee rapidamente, eu também o fiz. Improvisei rápido.

Ikeda: Esse é um método de ensino hábil. Toda sensei também confiava nos jovens e sempre os incentivava fazer coisas por si próprios. Nichiren Daishonin escreveu: “Ensinar algo a outra pessoa é como lubrificar as rodas de uma carruagem a fim de que girem, ainda que esta seja pesada, ou como pôr um barco na água para que navegue sem dificuldade” (CEND, v. II, p. 353). A profunda interação entre mestre e discípulo proporciona coragem e sabedoria abundantes para superar as adversidades. É fonte de grande criatividade.

Shorter: No sentido mais amplo de “mestre”, posso mencionar muitos músicos que admiro, como o pianista Art Tatum ou Chopin, Debussy e Stravinsky. Eles me influenciam até hoje. Por exemplo, quando ouço uma peça de Mozart, eu me pergunto o que ele estaria fazendo naquela época de sua vida.

Ikeda: O senhor admirou e aprendeu com uma grande diversidade de músicos não somente de jazz, mas clássicos, como seus mestres. Aqueles que têm um mestre no coração são humildes. Não há limites para aqueles que possuem um grande mestre como modelo.

Converso com Toda sensei em meu coração todos os dias. Sempre me pergunto o que ele faria quando tomo decisões e ajo com base nelas. Isso me mantém firme e focado.

Hancock: A ideia de o mestre e o discípulo compartilharem um compromisso é a chave. Não é apenas o sonho do mestre, e não é separado do sonho do discípulo. De fato, se mestre e discípulo não conseguem compartilhar do mesmo sonho, algo está errado.

No jazz, minha relação de mestre e discípulo com Miles continua. Sinto que estou continuando sua vida. Quando você fala de Toda sensei, sinto o mesmo. Quer dizer, no senhor a vida dele jamais encontrará um fim. A conexão permanecerá para sempre.

Ikeda: Em uma passagem de sua autobiografia, Miles Davis relata sobre trabalhar junto com outro músico: “Ele me influenciou, e eu o influenciei, e é sempre assim que a boa música é feita. Todos mostrando algo aos demais e seguindo em frente a partir daí”.1 Quando o belo espírito compartilhado flui pelo coração de mestre e discípulo, e em meio aos amigos, um infinito horizonte se revela diante de nós.

O budismo ensina: “Se um mestre possui um bom discípulo, ambos obterão o fruto do estado de buda” (CEND, v. II, p. 173). A relação de mestre e discípulo é um laço entre duas vidas gerado pela mútua e mais sincera determinação de um mestre comprometido a incentivar o discípulo a superá-lo, e de um discípulo em corresponder de todo o coração ao objetivo do mestre.

O Sutra do Lótus ensina sobre a eternidade dessa relação: “Depois que o Buda entrou em extinção, as pessoas que ouviram a Lei habitaram aqui e ali, em várias terras do buda, e constantemente renasceram em companhia de seus mestres” [LSOC, cap. 7, p. 178] (cf. CEND, v. II, p. 5). Mestre e discípulo estão em uma jornada sem fim e o desafio de concretizar esse juramento continua eternamente, mantendo vivo um espírito sempre jovem.

Constantemente polindo a nós mesmos

Ikeda: Nichiren Daishonin escreveu para a monja leiga Ueno, mãe de Nanjo Tokimitsu, em 1281: “Li, em sua mensagem, que sua alegria no início desta primavera se abriu como as flores de cerejeira” (CEND, v. II, p. 358).2 Nessa época, a família [dela] estava enfrentando dificuldades. Sem temer por sua própria segurança, Tokimitsu protegera os seguidores de Daishonin durante a assim chamada Perseguição de Atsuhara — uma época em que os templos tradicionais instigavam ilegalmente a perseguição oficial aos seguidores de Nichiren Daishonin e os reprimia por sua fé.3 Como resultado, o governo sujeitou Tokimitsu a pressões econômicas. Ele também estava lidando com uma tristeza profunda pela perda súbita do irmão mais novo, prematuramente aos 16 anos.

Fazendo dos ensinamentos de Nichiren Daishonin seu alicerce, Tokimitsu e sua mãe suportaram o amargo frio do inverno e estavam se preparando para receber o novo ano com renovada determinação. Como a história atesta, ele e sua família provaram as palavras de Daishonin de que “o inverno nunca falha em se tornar primavera” (CEND, v. I, p. 560).

Sr. Hancock e Sr. Shorter, ambos superaram provações para fazer a flor da vitória desabrochar. Espero que os senhores continuem a executar vigorosamente o hino da vitória do espírito humano.

Hancock: Faremos o nosso melhor. Tanto na vida como no jazz, nunca devemos nos esquecer de que temos a capacidade de responder a tudo o que acontece de forma que floresça na primavera e se torne parte da trama criativa.

Shorter: As pessoas têm de entender que elas são protagonistas e que o vasto e ilimitado potencial da criatividade e da responsabilidade andam de mãos dadas com a disciplina. É nossa obrigação como indivíduos nos dedicar a sermos líderes nesse processo de liberdade, organização, criatividade e disciplina.

Art Blakey gostava de dizer que devemos entender e nos tornar mais conscientes sobre nós mesmos. Ele perguntava se tínhamos essa consciência sobre nós mesmos e nos dizia que, quando nossa técnica estivesse madura, produziríamos nossas próprias e inconfundíveis cores.

Ikeda: De fato, a cor de sua performance é vívida e singular.

Nichiren Daishonin fala sobre “cada ser — a cerejeira, a ameixeira, o pessegueiro e o damasqueiro — em sua própria entidade, sem passar por nenhuma mudança” (OTT, p. 200). Em outras palavras, a cerejeira, a ameixeira, o pessegueiro e o damasqueiro, cada um à sua maneira, suportam o frio do inverno para florescer gloriosamente. Eles não têm inveja ou ressentimentos das outras flores. Cada um floresce de forma única, fiel à sua natureza.

Todos os seres humanos também possuem uma vida digna de supremo respeito. Nossa tarefa é fazer nossa vida brilhar ao máximo e fazer florescer completamente nossa nobre e incomparável missão. Além disso, precisamos respeitar, aprender com os outros e incentivá-los, expandindo o jardim florido da felicidade e da alegria. Esse é o mundo da Lei Mística. Como um poeta japonês expressou, “Somos todos diferentes, todos maravilhosos”.4

Hancock: Em termos musicais, o conceito de “cerejeira, ameixeira, pessegueiro e damasqueiro” tem relação com a personalidade do músico; enquanto músicos, todos têm seu som particular. Por meio da prática budista, compreendemos que a personalidade de cada ser humano também tem sua própria melodia. Ao praticarmos o budismo, não nos tornamos outra pessoa. Ainda somos os mesmos.

Ikeda: Sobre a questão das diferenças de personalidade, Toda sensei costumava dizer: “Mesmo a pessoa mais grandiosa tem limitações, assim como a pessoa mais difícil tem virtudes. Se ajudarmos todos a maximizar suas virtudes, todos serão capazes e participantes ativos em nosso movimento”. Em termos de música, podemos dizer que isso significa que uma apresentação tocante surge quando cada músico não só aperfeiçoa sua técnica, mas ajuda os outros músicos a fazer o mesmo.

Shorter: O ensinamento do princípio de “cerejeira, ameixeira, pessegueiro e damasqueiro” é rico em sabedoria. Comecei a pensar sobre como posso usar minha prática para me guiar nas viagens e demonstrar como é possível abandonar falsas opiniões que algumas pessoas podem ter sobre qualquer um que pareça diferente.

Como posso demonstrar o valor de abraçar as diferenças? Quando minha banda se apresenta, estamos conscientes de nossas diferenças; todas as forças e limites estão igualmente abraçados e representam preciosas oportunidades de “viver o momento” enquanto criamos valor de forma exponencial. Ironicamente, nossas diferenças são o que mais comumente compartilhamos. Sabemos que, quanto mais diversos somos, mais teremos sucesso em promover a paz e o amor.

Hancock: É verdade. Cada músico deve desenvolver sua própria e única melodia. Você não escolhe um instrumento e automaticamente encontra sua melodia, é algo que você deve batalhar para encontrar e criar. Em última instância, você se torna o instrumento.

Acredito que o processo de remover obstáculos e fazer uma autorreflexão revela nossos aspectos mais profundos. Isso me lembra um princípio que o budismo ensina, chamado “abandonar o transitório e revelar o verdadeiro”. Isso significa abandonar nosso estado transitório como uma pessoa não iluminada, sobrecarregada pelo carma, e revelar nossa identidade verdadeira, original, como um buda com infinita sabedoria e compaixão.

Ikeda: E ao retornar para nosso verdadeiro eu original, podemos dar uma renovada partida.

Toda sensei costumava dizer: “Se acaso você se sentir atolado, evidencie o grande poder da fé, desafie suas fraquezas, triunfe e expanda sua condição de vida. Esse é o desafio contínuo de ‘abandonar o transitório e revelar o verdadeiro’ na própria vida”.

Ao dedicarmos nossa vida à Lei Mística, cada dia é para nós um novo começo, sempre. Todo dia é Ano-Novo. Podemos fazer nossa vida brilhar como o sol e dissipar a escuridão da ignorância. A melodia do Nam-myoho-renge-kyo marca esse novo alvorecer.

Hancock: Como o senhor nos ensina, podemos, por meio da nossa própria sabedoria, descobrir um caminho para fazer mesmo as circunstâncias negativas serem parte do nosso crescimento e felicidade.

Ikeda: Nichiren Daishonin escreveu: “A mente que se encontra encoberta pela ilusão da escuridão inata da vida é como um espelho embaçado; mas, ao ser polida, tornar-se-á como um espelho límpido, que refletirá a natureza essencial dos fenômenos e da realidade. Manifeste sua fé polindo seu espelho dia e noite” (CEND, v. I, p. 4).

Praticar o budismo é constantemente polir a própria vida. Nossa interação com os outros tem o poder de polir nossa vida e a deles.

Shorter: Tenho compartilhado minhas experiências sobre preconceito e intolerância enquanto estou na estrada. Incluo histórias de superação de tais obstáculos sem usar palavras como “intolerância”, “ódio” e “preconceito”. Sempre relaciono ou direciono essas histórias à felicidade.

Compartilhar experiências nas reuniões de palestra da SGI nos proporciona momentos efetiva e sinceramente emocionantes, relacionados à união a partir das diferenças.

Ikeda: Os senhores abrem a casa para as reuniões de palestra da Soka Gakkai. Ouvi que também se esforçam para participar do máximo de reuniões possível, apesar da agenda lotada. Quando os senhores participaram de uma reunião em Kansai, Japão, no passado, os membros de lá ficaram encantados. De acordo com o termo “flores humanas” do Sutra do Lótus, as reuniões de palestra da Soka Gakkai são jardins do diálogo, no qual a flor da humanidade é incentivada a desabrochar.

Ao discursar na Universidade Harvard em 1993, compartilhei que a razão pela qual Shakyamuni foi capaz de dialogar com os mais variados tipos de pessoas foi por estar livre de dogmas, preconceitos e apegos. Referindo-me às palavras de Shakyamuni, frisei que devemos vencer a “única e invisível flecha que atravessa o coração das pessoas”.5 A “flecha” representa o apego a distinções, uma forma de pensar prejudicial que discrimina outras pessoas. É algo que vem de dentro de nós, não de fora. O diálogo aberto, livre, se torna possível somente por meio da superação da discriminação ou da fixação irracional pela diferença em nosso coração.

Hancock: Sinto que é muito importante abraçar culturas diferentes. Fazer isso representa a sabedoria da inclusão, a sabedoria que nasce da abertura e do respeito aos outros, respeito por algo fora de mim.

Shorter: Miles Davis e Art Blakey tinham a mente aberta sobre isso, eles não eram “musicistas fanáticos”, nem eram avessos a aprender com as maravilhas da juventude, ou com os acadêmicos. Ambos empregaram adolescentes como integrantes da banda e os dois incluíram música e músicos de outros países. Meu pensamento é igual ao deles.

Ikeda: Todos são humanos. Felix Unger, presidente da Academia Europeia de Ciências e Artes, me disse que ele poderia apenas concluir, enquanto médico, que “seres humanos ao redor do mundo são surpreendentemente iguais em termos de fisiologia”.6

Ele completou: “Na fisiologia impomos violentas diferenças culturais e religiosas. Mas devido a nossas similaridades nítidas, não estamos nos enganando quando definimos diferenças culturais e religiosas como conflitos básicos?”.7 Desenvolvi uma longa conversa com o Sr. Unger sobre a importância do diálogo a respeito de religiões e civilizações.

Aqueles que conseguem respeitar diferenças e qualidades que eles próprios não possuem — aqueles que conseguem respeitar os outros como únicos — fazem novas descobertas e o futuro se abre para eles. Também conseguem fazer sua personalidade e qualidades únicas brilharem ao máximo.

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