Na prática
TC
Vamos dialogar? Como pôr em prática o “caminho do meio”
01/07/2022
De acordo com estudiosos da China e do Japão, o fundador do budismo, Shakyamuni, viveu entre 1029 e 949 a.E.C.1 Shakyamuni renunciou à posição de príncipe do clã Shakya e deixou o palácio em busca de respostas para as questões do nascimento, do envelhecimento, da doença e da morte. Estudou diversas doutrinas de sua época e dedicou-se à prática de austeridades. Porém, ao longo de sua jornada, Shakyamuni percebeu que nenhum desses caminhos o conduziria a alcançar o que buscava. Mas não desistiu do seu intento, e, em determinada ocasião, sentou-se sob uma árvore bodhi, entrou em meditação, lutou bravamente contra as próprias tendências negativas internas e finalmente atingiu a iluminação. Desse dia em diante, com o profundo desejo de conduzir outras pessoas a alcançar a mesma condição iluminada que ele, Shakyamuni — a partir de diálogos sinceros — expôs um grande número de ensinamentos que, mais tarde, foram compilados na forma de sutras.
Dentre esses ensinamentos, há o conceito do “caminho do meio”, derivado de uma premissa do Buda, quando ele compreendeu que nem uma vida de prazeres mundanos nem uma vida de buscas puramente espirituais poderiam trazer felicidade genuína. No Estudo da edição, o presidente da SGI, Dr. Daisaku Ikeda, clarifica o princípio:
Há muitas dualidades no nosso mundo — existência e não existência, bem e mal, materialismo e espiritualismo, capitalismo e comunismo, nativos e estrangeiros, maioria e minoria, eu e os outros, e assim por diante.
Quando nos agarramos a essas dualidades, tendemos a nos inclinar para um lado e rejeitar o outro.
A visão budista de caminho do meio, contudo, é inteiramente diferente. Ela não rejeita nenhum lado, pois ambos envolvem seres humanos. O budismo genuíno é um ensinamento perfeito que abarca tudo. Viver trilhando a grande estrada do caminho do meio se refere a fazer uso positivo de tudo e criar novo valor.2
Assim sendo, a seção Na Prática explicará quão importante e profundo é o caminho do meio, e a maneira de aplicarmos o princípio na vida diária.
Parábola budista
Para ilustrar o conceito, apresentamos uma parábola budista.3
Um dos discípulos do buda Shakyamuni, chamado Sona, era um jovem de família rica. Após decidir renunciar à vida secular, Sona dedicou-se com afinco à prática de austeridades para atingir a iluminação. Apesar de seu intenso esforço, ele não conseguia alcançar seu objetivo. Certo dia, Shakyamuni ao saber da angústia de Sona, foi visitá-lo. Conhecendo a habilidade do jovem em tocar cítara, o Buda deu início ao diálogo:
— Sona, você não pode produzir um bom som com seu instrumento se apertar demais a corda, não é?
O jovem assentiu com a cabeça.
— E do mesmo modo, você não pode produzir um bom som se afrouxar demais a corda, não é? — inquiriu-o, mais uma vez, Shakyamuni.
Sona concordou novamente.
— Então, o que você faria? — perguntou-lhe o Buda.
— Mestre, para extrair um bom som da cítara, é preciso afinar as cordas apropriadamente. Não se deve afrouxá-las demais.
— Sona, não percebe que a prática do caminho que eu prego é exatamente o mesmo? Se você exceder em sua prática, forçará a mente e ficará tenso. Mas se você relaxar a mente demais, será derrotado pela passividade. Como a cítara, você deve encontrar um equilíbrio na prática do caminho.
Assim, Sona compreendeu que sua prática deve ser conduzida com bom senso e equilíbrio.
Essa parábola orienta que o caminho do meio é um princípio que expõe a visão correta da vida ensinada pelo Buda. Um caminho da sabedoria, da ponderação e do autoconhecimento.
Arte insuperável
Com essa pequena parábola do Buda, podemos compreender que o caminho do meio é um modo de viver de maneira harmônica, isto é, o controle dos impulsos e do comportamento das pessoas.
Embora a palavra “meio” possa denotar moderação, a expressão “caminho do meio” não deve ser interpretada como “meio-termo” ou como ter uma atitude indecisa, passiva, comodista e descuidada.
O presidente Ikeda diz que “Nesta época cada vez mais caótica é que se busca intensamente o caminho do meio como modo de vida, de nunca perder o foco no que é fundamental: o ser humano”.4 Esse é o caminho de vida baseado na crença inabalável na dignidade de todos, valorizando cada indivíduo com máximo respeito.
Para amplificar essa visão do caminho do meio, Ikeda sensei cita, em uma orientação, o ensaísta Ralph Waldo Emerson:
Há uma arte muito melhor que a pintura, a poesia, a música ou a arquitetura — melhor que a botânica, a geologia ou qualquer outra ciência. Qual é essa arte insuperável? É o diálogo.
O diálogo sábio, culto e genial é a última flor da civilização e o melhor resultado que a vida tem a nos oferecer.5
Ikeda sensei também diz:
Dialoguem de forma livre e descontraída. O diálogo de vida a vida é a força fundamental para transformar a sociedade, impulsionar uma era e criar a história.
Vivemos numa sociedade em que a informação corre solta. Sinto a necessidade urgente de realizarmos um diálogo sincero que rompa as palavras falsas e maldosas e una os corações.6
Nesse sentido, podemos relacionar a perspectiva sobre o diálogo apresentada pelo presidente Ikeda com o conceito de “caminho do meio”. Pois, o diálogo realizado de modo desprendido e, acima de tudo, genuíno, é capaz de se tornar um ponto de construção conjunta, ao compreendermos e também somarmos com a visão do outro.
E em virtude dos desafios que a humanidade enfrenta, é necessário estabelecer uma cultura de diálogo como caminho para o entendimento e o respeito. Por outro lado, a falta dessa cultura poderá gerar situações de contendas, desarmonia, intrigas, desavenças, violência e até o extremo das guerras.
A ciência também apresenta compreensão similar a respeito de uma comunicação mais assertiva. A comunicação não violenta — conceito que estimula a empatia — foi concebida nos anos 1960 pelo psicólogo estadunidense Marshall Rosenberg.
Fortalecer os laços humanos
A princípio, as técnicas criadas por Marshall Rosenberg foram implantadas em escolas para tentar resolver conflitos, em grande parte, pela falta de diálogos eficientes entre a equipe de profissionais, além de professores e de alunos. Marshall Rosenberg percebia que uma comunicação pouco efetiva, permeada de juízo de valor, provocava, na maioria das vezes, insatisfação ao menos em uma das partes. Por outro lado, o psicólogo entendeu que adotar uma postura sensata diante dos conflitos poderia promover mais integração e melhor convivência.
A proposta da comunicação não violenta (CNV) é que a interação seja sempre regada de respeito e honestidade na relação. Portanto, ela não está apenas no conteúdo da informação, mas na maneira como é transmitida.
Existem quatro elementos essenciais fundamentados na comunicação não violenta: observação, sentimento, necessidade e pedido. Em cada um a inquirição se faz presente.
1. Observação
O que está acontecendo? Qual informação estou recebendo? Acontecimentos recorrentes ou falas que nos incomodam.
2. Sentimento
Como me sinto diante disso? É preciso compreender nossos sentimentos antes de nos expressar.
3. Necessidade
Quais as necessidades despertadas por esse sentimento? O que é importante para melhorar esse sentimento, ou resolver a situação.
4. Pedido
Pedir especificamente o que sente necessidade. Nesse momento, devem-se evitar frases vagas.
Dessa forma, compreendemos que, com a comunicação assertiva e sem apontamentos de culpa — tal como apresentado pelo presidente Ikeda —, é possível criar relações mais saudáveis consigo e com as pessoas ao redor. Importante também estarmos atentos sobre as próprias necessidades e emoções, aprimorar o autoconhecimento e a escuta ativa. Isso porque, acima de tudo, a comunicação não violenta incentiva um processo de educação emocional.
Em síntese, as técnicas podem ser utilizadas em todas as relações, priorizando o fortalecimento de laços e a continuidade dos bons relacionamentos.
Criar novo valor
Em paralelo ao estudo da comunicação não violenta, há algumas resoluções ensinadas por Ikeda sensei que nos permitem desenvolver relações mais positivas. Ele afirma:
Como é importante conversarmos com as pessoas, engajarmo-nos em diálogos! Armados de paciência e trajando o manto da cortesia e da tolerância, vamos insistir em sempre falar com os outros com uma voz clara e vibrante. Vamos dialogar de forma calorosa e alegre. Vamos realizar diálogos que inspirem e incentivem; diálogos transbordantes de filosofia. São esses diálogos que abrirão o caminho para um mundo realmente mais humano. E vamos nos empenhar ao máximo para ligar esses diálogos à contínua vitória de nosso movimento.7
Na citação, o presidente Ikeda ressalta pontos fundamentais de como conduzir diálogos frutíferos, e que podem resultar em concordância, conciliação e cooperação:
1. Dialoguem com uma voz clara e vibrante.
2. Dialoguem de forma calorosa e alegre.
3. Dialoguem de modo que inspirem e incentivem.
4. Diálogos transbordantes de filosofia.
Assim, o diálogo tenaz é a expressão do conceito de caminho do meio, manifestado com o exercício contínuo da fé budista. A convicta recitação do daimoku, o estudo compenetrado para compreender os ensinamentos do budismo, e com os incentivos inspiradores do Mestre — todos esses elementos impactam diretamente em nossa compreensão da realidade da vida e em nossa interação empreendidas diariamente. Com essa disposição, é possível criar valor, mesmo com olhares díspares sobre qualquer tema.
Construtor da paz
Como vimos no início, o buda Shakyamuni compreendeu que nem uma vida de prazeres mundanos nem uma vida de buscas puramente espirituais poderiam resultar em plena felicidade. A partir desse entendimento, ele passou a caminhar por toda a Índia empreendendo conexões de vida a vida com quem se encontrava, exercendo na prática o caminho do meio.
Como atesta o presidente Ikeda: “O diálogo repleto de convicção possui o poder de mudar o coração das pessoas”.8 Em qualquer instância — na família, no mundo corporativo, na política, nas estruturas sociais —, quando existe a relação construtiva, desapegada da autopreservação, um universo de possibilidades se abre. Por essa razão, a prática budista torna-se essencial para evidenciar prudência e reflexão nos vínculos interpessoais.
Aliado ao processo da comunicação não violenta, o diálogo carregado de humanismo é a expressão máxima da visão budista do caminho do meio e o construtor da paz. Com isso em mente, façamos dessa competência humana o principal recurso para estreitar corações, romper barreiras e estabelecer conexões genuínas. Então, vamos dialogar?
No topo: Diálogo do presidente Ikeda com o famoso historiador britânico Arnold J. Toynbee (Londres, Inglaterra, maio 1972) Foto: Seikyo Press
Notas:
1. Disponível: http://www.seikyopost.com.br/budismo/glossario. Acesso em: 31 maio 2022.
2. Terceira Civilização, ed. 647, jul. 2022, p. 57.
3. Cf. Terceira Civilização, ed. 408, ago. 2002, p. 12.
4. Brasil Seikyo, ed. 2.457, 23 fev. 2019, p. B1.
5. Idem, ed. 1.780, 22 jan. 2005, p. A3.
6. Idem, ed. 2.426, 7 jul. 2018, p. A2.
7. Idem, ed. 1.579, 11 nov. 2000, p. A4.
8. Cf. Brasil Seikyo, ed. 2.327, 11 jun. 2016, p. A2.
Compartilhar nas