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Ensaio

Monte Sainte-Victoire: uma montanha de sagrada vitória na Provença, sul da França

Viagens ao redor do globo: o mundo é meu lar (19)

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27/01/2007

Monte Sainte-Victoire: uma montanha de sagrada vitória na Provença, sul da França
O pintor olhava para a montanha com uma ardente intensidade: “Só um pouquinho mais! Estou quase lá!” Seu olhar estava tão concentrado que os olhos pareciam em chamas. O famoso pintor francês Paul Cézanne (1839–1906) passou dias observando o Monte Sainte-Victoire — “Monte da Sagrada Vitória” na região da Provença, sul da França.

Estava determinado a retratar a montanha na tela. Era um enorme desafio. Cézanne realizou muitas e muitas tentativas, mas continuava insatisfeito. Ele e a montanha pareciam estar engajados numa luta desesperada.

“Estou trabalhando com toda obstinação”,2 escreveu Cézanne a um conhecido. Estava com mais de 60 anos na ocasião, mas ainda não era muito famoso como artista. Mesmo em Paris, poucas pessoas estavam cientes do verdadeiro valor de sua obra. Na cidade no Sul da França onde ele nascera, era considerado como um inútil.

Cézanne se levantava cedo e saía de casa levando sua caixa de tintas. As crianças o seguiam, zombando dele e o insultando, algumas delas até mesmo atirando-lhe pedras, mas ele seguia seu caminho em silêncio. Ele estava se dirigindo para a montanha da vitória. Captaria sua essência e registraria a verdadeira imagem do Monte Sainte-Victoire na tela.

A montanha física estava bem ali, mas a montanha de Cézanne estava muito, muito distante. Ele percorreu uma longa estrada cheia de obstáculos. Porém, agora estava próximo e podia ver os indistintos sinais de sua própria montanha da vitória!

Quando vi pela primeira vez a forma rochosa e imponente do Monte Sainte-Victoire, compreendi de imediato o amor que Cézanne sentia pela montanha. Ela exerce uma misteriosa atração. Todas as vezes que visitei o Centro de Treinamento da SGI da Europa em Trets, no sul da França, tive a oportunidade de ver a montanha. Possuindo ao mesmo tempo a eterna solidez de incontáveis milênios, ela emanava também um dinamismo parecendo dizer que havia nascido naquela exata manhã. Serena e indomável, era como se também pudesse entrar em erupção a qualquer momento. Embora houvesse nascido das entranhas da terra, parecia ser ao mesmo tempo uma dádiva caída dos céus.

O Monte Sainte-Victoire é um cume longo e prateado que foi moldado como um prisma no seu flanco. Sua forma parece infinitamente variável, dependendo do ângulo de visão e da variação da luz. A primeira vez que o vi foi em junho de 1981, durante minha primeira visita ao Centro de Treinamento da Europa. Compartilhei meu entusiasmo com os membros de muitos países que estavam ali reunidos: “Vejam! Que montanha magnífica. Ela parece um gigante — talvez o Buda Sakyamuni, por exemplo — descansando ao seu lado. Embora imponente, possui uma aura elegante e graciosa. Ela me faz lembrar a forte determinação da fé: nada a intimida, nada consegue derrotá-la. Ela é forte e intensa, mas ao mesmo tempo demonstra ter uma inesgotável energia que envolve tudo. Incorpora o que o Sutra de Lótus descreve como ‘oculto na distante profundeza’ (LS10, pág. 166.) Espero que todos vocês se tornem tão incrivelmente fortes como essa montanha.”

Cézanne continuou a avançar na direção de sua própria montanha da vitória. Ele passou a vida toda pintando, embora, não importando o quanto pintasse ou suas realizações continuassem sem ser aclamadas. Sua obra foi várias vezes rejeitada pelas maiores galerias. Os críticos enchiam-no de palavras ofensivas, cruéis e desdenhosas, chegando até mesmo a dizer que suas pinturas eram obra de um louco — ele, um pintor que posteriormente mestres tais como Matisse e Picasso chamariam de seu grande mestre. O que é novo, não importando sua excelência, é com freqüência rejeitado no primeiro momento justamente pelo fato de ser tão singular e desconhecido. Muitas pessoas simplesmente repetem de forma mecânica as opiniões aceitas e os gostos da época.

As pinturas de Cézanne não eram vendidas. Ele vivia em Paris com os poucos rendimentos que seu pai lhe enviava. Tendo saído da pobreza e se tornado um homem de posses, o pai o considerava um derrotado. Cézanne sabia disso, o que o deixava magoado. Nem mesmo o eminente escritor francês Émile Zola, amigo de infância de Cézanne, conseguiu compreender a genialidade do pintor. Cézanne estava sozinho.

No entanto, esforçando-se ao máximo e pintando, ele continuou a escalar a montanha de sua arte. Não importava se era ridicularizado; ele sabia que uma pessoa de genuíno comprometimento triunfa no final.

Cézanne era firme em sua dedicação à arte; sabe-se que ele devotou umas cem sessões de pintura a uma única natureza morta. Até mesmo no dia em que sua querida mãe faleceu, ele pintou. Possuía a obstinada firmeza de uma rocha.

Ainda sem ser reconhecido, já em seus últimos anos de vida voltou para a terra natal, Aix-en-Provence, e começou a pintar o Monte Sainte-Victoire. Imaginava como poderia reproduzir na tela a vitalidade da montanha. Como expressar a profundidade da natureza em três dimensões utilizando apenas uma única cor, como poderia representar a palpável densidade da atmosfera?

Ele havia tentado anteriormente retratar a harmonia do Universo em suas naturezas mortas de maçãs. Tencionava agora criar uma obra em que a cor e a forma, a emoção e o intelecto se mesclassem perfeitamente, uma pintura que fosse o ápice da longa história da pintura representativa. Conseguiria ele alcançar as alturas de seu objetivo? Conseguiria escalar o pico?

“Eu me consumo, mato a mim mesmo, para pintar cinqüenta centímetros de tela. Mas não importa; as coisas são assim. Morrerei pintando.”3

Ele estava pronto para morrer tentando — e, com essas palavras, Cézanne já havia triunfado. O importante é nunca desistir, é continuar a desafiar a si próprio até o fim. Creio que essa disposição era sua própria vitória.

No outono de 1906, Cézanne estava pintando ao ar livre quando começou a chover. Ao retornar debaixo da chuva, ele desmaiou. Posteriormente, um transeunte o encontrou e o levou de volta para casa. Uma semana depois, o artista cerrou seus olhos apaixonados pela última vez. Estava com 67 anos de idade. Mesmo no leito de morte, ele tentava pintar.

Cézanne era como uma rocha. Ele se tornou o próprio monumento, a própria montanha da vitória.

Mas esta não é a história de um simples gênio. Todos nós temos nosso próprio Monte Sainte-Victoire, nossa própria montanha da sagrada vitória, e precisamos encontrá-la e escalá-la até chegar ao topo.

É uma curta distância de carro do Centro de Treinamento da Europa em Trets até o porto de Marselha. Após o término da conferência com os membros europeus, dirigi-me para o alto, de onde se podia ver Marselha e visualizar o Chatô d’If, que aparece em O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas. Foi numa prisão nessa ilha rochosa que o herói do romance, Edmond Dantès, ficou injustamente encarcerado por causa das tramas de vilões cheios de intrigas.

Quando jovem, estudei o romance de Dumas com meu mestre Jossei Toda. Olhando para o Mediterrâneo, envolto pela brisa do mar, sentia como se pudesse ouvir a voz daquele invencível defensor da Lei Mística. O Sr. Toda parecia dizer-me: “Este é o caminho da fé e do comprometimento que você escolheu. Siga-o até o fim de sua vida! Embora seja constantemente perseguido, meu discípulo, nunca lamente nem reclame. Alegre-se! Permaneça firme contra a furiosa ventania e sorria, lutando até o último momento! Uma pessoa assim com certeza será uma campeã de felicidade indestrutível existência após existência!”

Quando retornei para o Centro de Treinamento da Europa, havia um grande número de membros do sul da França reunidos ali. Caminhamos juntos pelos campos verdes sob a suave luz do crepúsculo, cantando e falando da alegria de viver uma existência dedicada ao Kossen-rufu.

Então, surgiu inesperadamente um grandioso arco-íris no céu. Foi um momento arrebatador. Ficamos todos ali parados, extasiados. E então todos aplaudiram.

Observando o Monte Sainte-Victoire, as encostas prateadas da montanha estavam pintadas num rico tom dourado pelos raios do sol poente. Suspirei ante a beleza daquela visão. Parecia um gigante real sorrindo de orgulho e proclamando a todos: “Vejam! Eu sou vitorioso!”

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