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Caderno Especial

O delicado fio da esperança

A depressão machuca a alma. E deixa cicatrizes eternas. Essa doença estranha, que vem não se sabe de onde e implode a vida é cercada de mistérios que nem cientistas desvendaram totalmente. Produzir esta reportagem exigiu um mergulho no universo de associados da BSGI que já passaram pelo problema. São histórias de vida difíceis de contar (para quem as relata) e difíceis de ouvir. Por vezes, relutamos se era melhor aprofundar o tema ou desligar o gravador. Mesmo nos que se dizem curados, há um quê diferente no fundo do olhar. A alma parece deixar escorrer um fiozinho de tristeza. Talvez como alerta de que a sutileza da vida pode surpreender a todos e a qualquer momento. Talvez porque a vida deles tenha ficado, de fato, por um fio. O ofício de jornalista é assim mesmo. Vem carregado de momentos encharcados de emoção. Mas é preciso sobriedade para escrever e racionalidade para não deixar escapar a beleza de momentos tensos. Vamos às histórias.

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21/11/2009

O delicado fio da esperança

CORAGEM E SUPERAÇÃO

O olhar de Fernando é como uma represa. Mesmo segurando no peito uma história difícil, deixa sair pelas comportas do coração a satisfação de estar vivo e ter escapado da morte e da depressão.

Uma pergunta óbvia de se fazer e áspera para responder: “Quais eram suas sensações no auge da depressão?” Seu olhar perde-se no vazio, mas não há hesitação; ele concordou em detalhar sua história para incentivar e animar os que passam pelo problema e alertar quem não percebe que a depressão pode assolar qualquer um a qualquer momento.

“Depressão é como estar com energia vital quase zero”, descreve Fernando, sem saber os motivos reais que o levaram à doença. No geral, os médicos também não sabem as causas e a explicação mais provavelmente correta é um desequilíbrio bioquímico dos neurônios responsáveis pelo controle do estado de humor. Os especialistas também falam de eventos desencadeantes: acontecimentos estressantes na vida das pessoas podem ser o início de um processo depressivo. Podem ser! Muitas vezes pessoas passam por estresses parecidos, mas nem todas assimilam de maneira negativa a ponto de gerar uma depressão. Ou seja, o corpo precisa estar predisposto e vulnerável de alguma maneira para que a depressão inicie seu trabalho destruidor.

Fernando diz que acumulou num curto período de tempo uma quantidade grande de problemas na família, no trabalho e questões financeiras. Mas nada que não pudesse ser resolvido, a não ser pelo fato de estar vulnerável. E caiu num estado de depressão fortíssimo.

As sensações descritas por ele são cenas arrepiantes de uma fase que ele se orgulha de dizer ter superado: “Tudo começou a ruir dentro de mim. Meu coração estava pulsando porque tinha de pulsar; minha vontade era que ele parasse. Um dia estava em casa e tudo já tinha explodido na minha vida: comecei a beber e nesse dia tomei uma garrafa de uísque e várias cervejas e não consegui me tranquilizar com a bebida. Ali começava a doença. Anoitecia e eu passava a madrugada em claro; amanhecia e eu praticamente vegetando, sem produzir nada, apenas me maltratando. A pessoa fica muito fraca e isso mexe com todo o corpo, mente. Parei de pensar racionalmente, começei a pensar de forma irracional tentando me maltratar, pois se maltratando mostra-se para as pessoas que elas têm culpa pela sua desgraça. A doença nos conduz para a animalidade, acabamos nos tornando animais. Maltratava-me para atingir as pessoas com essas reações estranhas”.

Isso foi há um ano. Depois de diagnosticado, iniciou um tratamento com acompanhamento médico seguido à risca. E comemora o fato de estar há uma semana, por ordens médicas, sem o uso dos medicamentos. O ponto de mutação aconteceu quando ele admitiu estar doente, aceitou o tratamento e retomou com força total sua prática budista. Precisou ficar afastado por um longo tempo do trabalho. Mesmo assim, considera que a doença enriqueceu sua existência porque hoje consegue valorizar cada dia, cada abrir de olhos pela manhã é um renascimento, conta.

Um dos diálogos memoráveis dessa fase foi com um líder da BSGI. “Ele disse que eu era um buda. Mas eu me sentia um nada. Ou melhor, menos que nada. Mas ele foi rigoroso, benevolente e acreditou em mim.”

Fernando enche os olhos d´água ao falar da esposa e da filha de 5 anos. “Minha esposa foi vítima da minha doença, mas ao mesmo tempo ela encarou o meu problema como um desafio; qualquer pessoa no lugar dela teria me abandonado. Lembro-me das horas e horas que ela passava ao meu lado, recitando Daimoku. Minha vontade era fugir, mas por ela estar perto eu resistia e continuava a tentar me fortalecer.”

Quanto à filha, diz que tirou da mente pensamentos suicidas quando via a sua jovialidade e pureza. “Ela era mais forte que eu. Parecia adulta e forte e eu uma criança frágil. Só com o olhar dela eu me fortalecia. Esse foi o trampolim da minha vida.”

Fernando sabe que a depressão pode não estar totalmente curada. Mas sorri fartamente ao relatar da alegria que sente atualmente em viver. “A vida é o bem maior do ser humano, nosso corpo é uma máquina perfeita e somente nós mesmos podemos estragá-lo. Para esse corpo funcionar você precisa de uma mente boa, ter objetivos, e esse é o processo de ter dificuldades e vencê-las. Você precisa ser vitorioso! E a unicidade de mestre e discípulo com o presidente Ikeda tem a capacidade de revitalizar qualquer vida porque se vive com base na gratidão. Foi por causa do meu Mestre que fiz brotar a gratidão no coração. A gratidão moveu minha vida. Quando estive no Japão agradeci tudo que passei. A depressão foi um meio de comprovar o budismo na minha vida.” Fernando, Rio de Janeiro.

Hoje estou em paz

“O meu coração hoje tem paz, desilusão ficou para trás, eu encontrei um grande amor, meu sonho se realizou.” O trecho da canção Água de Chuva no Mar, de Beth Carvalho, é uma das prediletas do paulistano e associado da BSGI, C. V. Barros, 58 anos, pois ilustra sua alegria de viver e gratidão por praticar o Budismo Nitiren.

Quem vê C., todo falante e alegre, nem imagina que ele sofreu duas depressões: uma em 1998 e outra, mais forte, em 2006. Sem contar a síndrome do pânico. “Em uma das crises, me escondi dentro do armário, por medo de tudo e de todos. Insistia em dizer que não havia mais jeito, o melhor era morrer. Eu ficava andando de um lado para o outro, descalço, com as mãos na cabeça. Uma imagem marcante que levou minha família ao desespero.”

Ele credita sua depressão à angústias da infância, como a morte do pai: “Após seu falecimento [C. tinha seis anos de idade], me questionava se conseguiria viver sozinho. Não tinha esperança”. Na juventude, lembra que chegou a ser insultado na rua, sofreu grosserias no trabalho e dificuldades de relacionamento com os colegas na escola.

Em junho de 1973, casou-se e tem três filhos. “Queria ajudar todos de minha família e quando não conseguia, me sentia culpado. Pensava: se meus filhos estão sofrendo é porque não soube educá-los corretamente. E isso me frustrava, pois tinha de ser o pilar da casa”, conta.

Uma das filhas pertence à BSGI desde 1992. Diante de tantas angústias, na madrugada de 8 de maio de 2006 ele decidiu recitar o Nam-myoho-rengue-kyo para erradicar a maldade da doença. Sentiu-se encorajado e esperançoso.

O mês de maio de 2006 foi crucial para a família Barros. A depressão e o pessimismo impregnaram-se na sua vida com força total. Sentiu intensa dor de cabeça e não foi ao médico, pois achava que era câncer ou aneurisma.

Devido à dor de cabeça insuportável procurou, então, assistência médica e começou a tomar antidepressivo. No mesmo dia, apesar da sonolência e dificuldade de locomoção, determinou participar de uma reunião da BSGI. Teve de ser amparado pela filha: “Determinei que salvaria minha vida para me dedicar ao budismo”, relembra. Ele relata, emocionado, que nesse mês, sua saúde estava tão debilitada que só conseguia dormir com o som do Daimoku da filha, que o recitava ao lado da cama dele.

Para piorar, sua loja de venda e troca de automóveis também não ia bem. “Tive prejuízos financeiros, estava esgotado e encerrei o negócio.”

Ainda em maio, começou a participar regularmente das atividades: “Percebi que esse era o caminho para eu me levantar”. Manifestou sua paixão pela música e passou a integrar o coral de sua RM: “Comecei a cantar, me entrosei e fui esquecendo a depressão. Passei a valorizar as pessoas que sempre lutaram pelos outros e vi que precisava me engajar nessa luta também”.

Dia 31 de maio ele determinou que não tomaria mais remédios. A família receou as implicações de não seguir a recomendação médica. “Decidi que minha cura dependeria de muito Daimoku e de meu encontro com os amigos da Soka Gakkai”, relembra. Gradativamente ele foi recuperando a alegria de viver.

Sua inspiração veio, ao longo do tempo, de frases como essa de Daisaku Ikeda: “O futuro não começa amanhã, começa hoje, neste exato momento. Lembre-se que suas ações sólidas e corajosas é que esculpem o futuro”. (Guia de Orientações Líder, vol. 7, pág. 64).

Percebeu que cada um é responsável pela própria felicidade e não se culpa pelas questões externas: “É impossível resolver os problemas dos outros. Apoio as pessoas e digo que precisam estar na órbita da Lei Mística para serem felizes. E pergunto: quer participar de uma reunião de palestra?”

Ele está curado da depressão. Hoje, parte de sua família é praticante do budismo. Entre eles, dois dos três filhos. O terceiro é simpatizante e a esposa entrará para a BSGI em dezembro.

“Aprendi que maio de 2006, quando tive forte depressão, foi o melhor mês e ano de minha vida porque me envolvi intensamente nas atividades da BSGI. Tirei todas aquelas dúvidas que me atormentaram nos 55 anos anteriores de minha vida”, avalia.

Na sala da residência do sorridente C., o cavaquinho ao lado do oratório confirma o amor pela arte, especialmente o samba. Ele e alguns membros da RM integram um grupo de samba e tocam nas atividades da organização. Como não podia deixar de ser, a canção Água de Chuva no Mar, de Beth Carvalho, é a predileta e uma das mais entoadas aos membros da localidade.

QUERIA Ver o Sol

“Papai é pra você!” a criança anuncia animadamente a ligação telefônica do BS às 21h31 da última segunda-feira. Com apenas nove anos, ela é a responsável pelo “renascimento” de seu pai. Tal responsabilidade parece grande para uma criança. Porém, quando Carlos teve depressão, ela foi a razão dele não “fazer uma bobagem”.

“Pensei em me suicidar, mas quando via minha filha perdia a coragem.” A depressão de Carlos ocorreu em 2004 e aparentemente não tinha motivo.“ Minha família era linda, tinha casa, carro e um bom emprego. Tudo o que julgava ser necessário para a felicidade”. Mas, como a grande maioria das pessoas em depressão, Carlos sentia um imenso vazio interno e vivia muito ansioso.

Formado em publicidade e propaganda, a dispensa do emprego foi a gota d’água para desencadear uma série de sentimentos e reações explosivas. “Fiquei grosseiro e muito bravo. Minha esposa me chamava de tolerância zero”, relembra.

“Não fui educado para ser feliz.” Com o desemprego repentino, ele não mais controlava as finanças da casa e não tinha domínio da própria vida. O efeito foi a depressão. “Senti na pele o que é o estado de inferno, descrito nas teorias budistas.”

No auge da depressão, queria fugir das pessoas e das dificuldades. Assim, dormia durante todo o dia e à noite ficava acordado. Ele conta que desde que se conhece por gente, sofreu de insônia, mas com a depressão o problema se agravou. A esposa, já sem saber o que fazer, aconselhou uma consulta médica. Remédios e um forte calmante entraram no seu cardápio diário. Ao ingerir o calmante, uma gostosa sensação de alívio. “Parecia uma anestesia e eu dormia muito. Era maravilhoso!”

Quando um membro na família está em depressão, todos são afetados. Seu sobrinho e a esposa dele, que já praticavam o Budismo Nitiren, oravam Daimoku para a recuperação do tio.

Foi a partir de um convite dos sobrinhos que a situação de Carlos começou a mudar. Ao contar sobre a primeira Reunião de Palestra, sua voz eleva-se num tom alegre. “Fiquei encantado com as pessoas. Eram muito simples, mas felizes e acolhedoras”, conta. O conteúdo da reunião foi de encontro ao que Carlos acreditava, principalmente ao ouvir a explicação sobre a Lei de Causa e Efeito.

O publicitário passou a receber visitas dos membros da BSGI, mas era desconfiado. “Não entendia porque faziam aquilo.” E ainda era relutante quanto à recitação do Nam-myoho-rengue-kyo, pois achava que não precisava de nada e nem de ninguém para se curar. Porém, numa noite ao recitar Daimoku, conseguiu dormir tranquilamente e acordou cedo. “Depois de muito tempo, vi o Sol nascendo após uma noite inteira de sono” — relata com a voz emocionada.

A partir desse dia, passou a praticar o budismo e a participar das reuniões colaborando também com os preparativos. “Meu estado de vida mudou. Passei a tratar as pessoas de modo diferente.” As orientações do presidente Ikeda e os escritos de Nitiren também o ajudaram a entender como o budismo é capaz de transformar o rumo da vida.

A família tornou-se associada da BSGI em 2004 e foram morar em Holambra. “Não havia muitos membros na cidade e minha preocupação era não dar continuidade na prática.” Mas com o tempo, Carlos conheceu outras pessoas que também praticavam o budismo na cidade e hoje, ele e sua esposa atuam como responsáveis de bloco.

No campo profissional, voltou ao mercado de trabalho e se sente realizado. “Sempre sonhei em liderar equipes na minha área de atuação e hoje é exatamente o que faço. Sonho realizado”, diz satisfeito.

Última pergunta:

— Carlos, para você qual o sentido da vida?

Segundos de silêncio, apenas o “chiado” do telefone ao fundo e uma bela resposta de quem um dia perdeu a vontade de viver:

— A vida é o bem mais precioso de todos.

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